Minhas histórias

[...]édio. De levantar e ter que levar adiante sempre as mesmas discussões. E ver que as pessoas – inclusive eu mesmo – emperram sempre nas mesmas reentrâncias. E que se perdem por lá, meu deus, como pode? Tédio, tédio, tenho sido a pessoa mais tediosa que conheço. Mas meus momentos de prazer, ai que medo deles! Não são de luxúria ou de orgia, quer dizer, até o são, mas também são de um platonismo e de uma distância astronômica entre o meu corpo e os dos outros. Pode haver orgias em distâncias tão galácticas? É que vou me entediando das pessoas e de seus corpos, sempre perdidas nas suas reentrâncias, e corpos sempre rodopiando em suas próprias curvas... E eu vejo filmes, e eu ouço músicas, e construo aí meus mundos, minhas histórias que se conectam muito vacilantemente com este mundo material do qual sinto tédio, um fio fraco liga aquilo que sou nas minhas histórias àquilo que sou na minha matéria.
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Desde muito pequeno eu aprendi a falar sozinho, mas não porque eu tivesse muito o que dizer e poucos pra quem falar; mas porque eu não podia falar, em nenhuma instância. Pra não morrer de tédio, naquele silêncio tedioso e preocupante que circunda crianças muito ingênuas, eu inventei meus companheiros e minhas situações, minhas escolhas, inventei até corpos e tempos diferentes, e falava falava falava. Eu falo muito mais sozinho. Mas daí que veio essa tradição, essa prática de inventar histórias pra mim. São fugas, sim, são escapismos, digressões. Só recorro às minhas histórias quando aqui na matéria está difícil de levar as coisas como elas se apresentam.
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Eu invento tudo, desde as justificativas até as genealogias, os desencontros, os trejeitos, os tons de voz, os olhares retos e os dissimulados, as roupas, as razões, os porquês dos medos. Tudo é de minha autoria. É um mini-mundo, um outro-mundo, um recorte do mundo onde me alojo para dormir. Normalmente reservo a meia hora antes de eu dormir para consubstanciar as minhas histórias. Não conto carneirinhos; conto histórias para mim, sobre como eu poderia ser diferente, sobre como eu poderia ter nascido em outras épocas, em outras dimensões, em outros corpos, sobre como eu poderia ter outras habilidades e outras dores, outras penitências, outros obstáculos, mas também outras delícias e outros prazeres, outros sorrisos. Há noites em que demoro horas arquitetando meus mundos, porque leva muito tempo e exige muito esforço. Há outras noites em que vinte minutos me bastam pra eu cair no sono – e fico torcendo para que nos meus sonhos eu continue nessas minhas viagens lindas por outros-eu. O problema é que raramente eu lembro dos meus sonhos, será isso um sinal?
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Nas minhas histórias não há nenhum tipo de tédio. São emocionantes como os filmes e as músicas que as inspiram. Os romances dos meus mundos são belos e forçosos, construídos a marteladas mediante crises e conquistados depois de muito embate. No fim, os corpos sempre vencem. Não há término para o número de histórias que contei sobre os diferentes eus que criei, e nem quero que haja. Quero majorá-las, incrementá-las ainda mais. Somente agora, com quase trinta anos, eu vejo que minhas histórias acabaram por se converter num modo que tenho de levar a vida. Não há como prescindir delas à esta altura – e como a idade vai pesando: já começo a me conformar com aquilo que sou, que tédio!
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Hoje mesmo experimentei uma delícia, que foi acordar antes do despertador tocar e permanecer na cama dando continuidade à história que eu criara na noite anterior. A cama quente e macia, os travesseiros bem colocados debaixo da minha cabeça e eu deitado de bruços: é o retrato do máximo conforto que já experimentei! Ali nessa posição eu fechei os olhos e criei criei criei minhas histórias, fantásticas e cheias de luz, cheias de mágica, cheias de sedução, e eu já não precisava mais me preocupar com o horário que eu deveria acordar, pois eu já estava acordado. E eu sou tão bonito nas minhas histórias, sou tão íntegro e justo, sábio, tranquilo, cheio de qualidades e virtudes: sou tão não-eu. Me agarro nos travesseiros e crio crio crio. Aí o despertador tocou. E me deu um tédio de ter que levantar da cama e ir encontrar as mesmas pessoas com seus mesmos ranços, suas mesmas dificuldades, perdidas nas mesmas reentrâncias – inclusive eu.
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Não é que as pessoas sejam más, nem eu sou mau (não de todo mau, pelo menos), mas somos repetitivos demais! É por isso que gastei e vou continuar gastando o dinheiro que ainda não tenho pra comprar roupas novas: porque quero outra casca, ao menos uma nova casca. Novos perfumes (comprei três vidros), novos tênis (pra pisar em diferentes chãos). Para cada nova história, um novo corpo. Não, as pessoas não são más, e várias até me surpreendem, me tomam por onde e quando eu não esperava, e isso me dá uma alegria louca. Eu gosto das pessoas, não vá achando que sou um ermitão autista psicótico que cria fantasias para fugir de uma realidade que lhe parece áspera. Talvez um pouco de cada (de ermitão, de autista e de psicótico), mas são esses meus temperos, meus sabores. Eu gosto das pessoas, e talvez seja por isso que elas habitam tão densamente essas minhas histórias: eu nunca estou sozinho nelas. Mas é verdade que nesses dias difíceis eu conto as horas para tomar um banho quente à noite e me deitar na cama, apagar a luz, agarrar meus travesseiros e criar mais um capítulo, com novos personagens, para um outro-eu: tediosamente sempre a mesma coisa, à noite e agora também pela manhã, pequenas doses de escapismo onde eu posso me recarregar de encantamento e voltar para a matéria. Um tédio alegre, um tédio voluntário, um tédio desejado, embora ainda sim um t[...]