O coelho vai dar um pulo

Sempre começo comendo coelhinhos de chocolate pelas orelhas: eles não gritam de dor. Quanto a mim, reajo a qualquer dor do corpo como uma potencial doença – talvez porque me ache desde sempre doente, doente de uma síndrome que me atravessa os olhos, a espinha, a barriga. Tenho medo desse ódio que sinto do corpo, do meu corpo, e temo que ele se transforme mais adiante em coisas bem materiais e palpáveis, como um câncer, ou que ele se eleve a um grau insuportável de autonomia e me conduza ao suicídio. Quero passar a gostar do meu corpo, o que fatalmente me possibilitaria cuidar dele melhor. Se o detesto, é claro que o saboto. Sinto que é preciso reiniciar, interrompendo um ciclo que vem de tempos, promovendo uma mudança que busque aquela claridade ofuscante de fechar os olhos. Sinto que mudo de uma ilha deserta para outra: é preciso um novo emprego, uma nova atitude em relação a mim, um novo homem no mundo. Um renascer que não é sinônimo de “começar do zero”, mas um recomeço que leve em conta de modo muito sério tudo o que me trouxe até aqui – inclusive com este corpo, neste estado, com estas dificuldades e com estas belezas. Seria preciso comer meu corpo pelas orelhas. Sinto que algo de profundamente novo está porvir em mim. Sinto que vou renunciar, romper e interromper; sinto que vou largar tudo e me virar. Sinto que vou parar e que vou olhar pra trás, com o vento batendo nos cabelos e com o cenho franzido, e que vou dar de costas para manifestar meu apreço e meu desprezo por tudo, por todos que me passaram, e sinto que vou caminhar adiante. Sinto que vou virar as costas. Cansei de me censurar por dormir demais, de ter pesadelos sobre acordar às onze e meia da manhã. Se o faço, é por pura insatisfação, é um jeito de fugir de ti e deles todos. Mas se eu fugir de vocês, jamais vou me permitir ser surpreendido, ser encantado; jamais vou me deixar ficar apaixonado por ti, justamente por ti, que vem com essa juventude de olhos penetrantes que... me apaixona. Eu decidi que vou fazer as pessoas se apaixonarem por mim e comprei dois perfumes: um para o peito e outro para as orelhas: porque quero que comecem a me comer pelas orelhas.