Morreu de tanto viver... [in memoriam Márcia Arán]

Detesto reticências – odeio. Mas as coloquei no título porque trazem aquele silêncio que antecipa uma lágrima esquerda, depois uma outra, à direita, sobre os cílios inferiores. Porque os três pontos podem ser também três lágrimas, ou muitas mais, e então é meu título que chora. Meu título chora.

Hoje morreu de tanto viver, de tanto viver, uma pessoa que eu jamais imaginei sofrer de uma doença terminal. Hoje morreu uma pessoa que eu jamais quereria saber morta. Hoje morreu uma pessoa que me ensinou, que me fez aprender, e aprender a pensar, que me devolveu o encantamento pelo estudo, que me foi gentil no momento em que eu precisava de aspereza e de disciplina [não, não acredito que seu pulso ficaria cerrado para um murro e que sua voz se elevaria para uma discussão], que não odiou o meu corpo nem minha voz nem meus cabelos, que aliás não odiou nenhum corpo, e que escreveu lindamente sobre o corpo de outras pessoas que vivem sem ter um corpo previsível. Ela fez poesia sobre os corpos imprevisíveis e imprevistos. Hoje morreu um corpo, mas toda a beleza daquela pessoa nos tocou de alguma forma, e ela ainda vive em nós, apesar da morte do seu corpo. Sua morte dói, e até causa um redemoinho momentâneo de revolta por ir-se justamente aquela que não precisava (que não deveria!) ir-se de nós; revolta por saber que ela se vai e que ficam aqui entre nós muitos outros corpos mesquinhos, vis, muitos outros corpos cujos egos não lhes cabem de tão grandiosos [pobres corpos que carregam, como camelos, os egos de quem se leva muito a sério]; redemoinho de saudade por não termos podido levantar a mão em sala de aula para fazer uma última pergunta sobre aquele último texto, sobre aquele último conceito, uma última pergunta sobre aquele corpo. Porque se soubéssemos que hoje morreria esta pessoa, não teríamos chegado atrasados na sala, nem teríamos deixado de ler sobre os corpos. Ou teríamos lido mais, muito mais, e teríamos pedido pra que esse corpo que morreu hoje ficasse um pouco mais, tirasse mais uma dúvida, esclarecesse sobre mais outros corpos dos quais gostava tanto de escrever. Ou, talvez, tenhamos aproveitado tudo na medida certa, a medida certa que essa pessoa viveu até hoje.

Se é verdade que o mundo ficou mais pobre, e que talvez eu, assim como muitas outras pessoas, tenha morrido um pouco junto com este corpo que morreu hoje, também é verdade que o toque de vida que ela nos deu quando viva impulsionou e potencializou muito do que fizemos e muito do que somos hoje. Se morremos um pouco junto com ela, também afirmamos nossas vidas junto com a dela, e através dela: ela me ensinou a não ter ódio do corpo, do meu corpo, de nenhum corpo, e me ensinou a estudar o corpo para celebrá-lo. Ela uma vez me disse que eu era um ótimo aluno: a ela sou grato por ter visto em mim um corpo e uma pessoa que eu jamais supus existirem.

Esta homenagem póstuma deita com carinho as memórias que tenho dos dias que compartilhei da presença viva, fulgurante, desta pessoa que, sem modéstia, mudou minha vida. Este corpo que amanhã será velado é só uma reticência do que ela foi em vida, nas nossas vidas – é nas nossas vidas onde ela ainda vive, já sem seu corpo.