Um grande SIM feito de espinhas inflamadas

[...]belos na minha cama e gotas de líquidos corpóreos. Coisa doida. Consigo contar pelo menos cinco diferentes formas, cores, texturas e gostos para esses pelos e cabelos, para essas gotas e líquidos. Nenhum deles se repetiu. Só eu, mas isso já estava suposto, isso era necessário.

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Não, não, não me censure, não diga que é feio. Eu só preciso me acomodar numa linha de força, num trilho de trem, numa corrente de água do mar e então eu vou seguindo bem confortavelmente até quando eu sou ejetado, pulo fora, renuncio à coroa. Porque eu gosto mesmo é do cetro. Não pense isso de mim: eu mudei. Eu até consigo seduzir. Eu até consigo arrancar as roupas, não de uma nem de duas, mas de três ou mil pessoas quase ao mesmo tempo – porque eu mudei. Nem sobre as nuvens, nem sob o chão. Eu minto, não nego, deixo a verdade pra mais tarde. Mas nada me impede de gozar, e de gozar sozinho ou em grupo, e de me acomodar novamente em mais um trilho de trem e seguir soltando fumaça como uma locomotiva – porque agora sou um criminoso por soltar fumaça.

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Nem no chão, nem no ar: não explodo nem me esvazio. Porque não há mais um pontilhado ou uma membrana que me divide de tudo que está fora (tudo que está fora: eu, tu, eles, os corpos com pelos e cabelos e líquidos, minha cama, as nuvens e o chão, as praias, os medos, os planos, a água. Tudo). Não há mais pontilhado que me divide de tudo isso; logo, não há como dizer que estou vazio ou que estou explodindo. Porque se vazio, é porque nada me afeta, é porque não tenho superfície. É porque não tenho ondas, nem marolas, não posso emergir e não venho à tona. Porque se explodindo, é porque absorvo demais, estendo demasiado a pele, estico o rosto num sorriso muito largo que rasga a boca. Nem dentro, nem fora: entre mim e todo o resto, entre mim e todo o entremeio do resto.

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Não te assustes, nem te apaixones, se o ser pequenino que te habita não me parecer monstruoso. Teu corpo não me estranha. Não é castigo, nem punição. Não é descuido. Não é falta de amor próprio, nem falta de autonomia. Não é opressão, não é burrice. Esse pequenino ser que agora te habita manda beijos, te lambe, desliza pelas tuas artérias, e nada disso te faz um monstro. Agora tu vive com ele, convive com ele, forma um outro corpo com ele. Esse pequenino ser que agora te habita dança axé na tua superfície. Nem a imensidão azul ou verde, nem a distância cinza: um brinde amarelo com gosto de lúpulo pelo pequenino ser que agora te habita. Nem choro, nem vela, nem procissão, nem círio. Nada me faz chorar, nem o Grande Não que recebi daquelas Mãos Judiadas. Foi só quando eu sobrevoei o mar que me dei conta do perigo pelo qual eu passei – uma espécie de pequeno monstro me habitava –, e foi então eu que renunciei a tudo que eu havia colocado uns sobre os outros: a mentira, o desejo, os óculos, os tanques de guerra, o tesão, os gatos, o sêmen, os telefonemas e os pesadelos com a Faixa de Gaza. Somente o sobrevoo me permitiu essa renúncia, e eu, de bom grado, prescindi de tudo e fiquei nu. Então, veja: eu também posso ser um pequenino monstro. E sou. Eu minto. Eu planejo vinganças – e as executo. Eu debocho e eu ironizo o sofrimento alheio. Eu desprezo o amor ao próximo e a reverência aos mortos. Eu rio do erro dos outros – na verdade eu gargalho deles. Quantas e quantas vezes eu mesmo disse: “cuidado com teu olhar, cuidado com o que tu olha e com o jeito que tu olha”. Quantas vezes eu neguei que houvesse praias brancas e desabitadas nessa costa imensa de superfície: uma impossibilidade geral de ocupar o que me era de direito, já que desde sempre me sentei à beira da saída de emergência da minha vida, louco de medo de haver um acidente fatal e, ao mesmo tempo, me sentindo totalmente incapaz de abrir a porta em caso de despressurização. Se tu me pedisse pra eu te salvar, eu daria uma gargalhada e gritaria, enquanto o avião despencava: “ERA TUDO MENTIRAAAAA!!!”. Porque eu minto e eu nego, e eu omito fatos e frases, e eu crio diálogos. Impossibilidade geral de assumir que tenho asas, ou turbinas; impossibilidade geral de aceitar que tenho curiosidade de vida, que tenho uma inteirinha que eu criei só pra mim e que ninguém entende como pode ser possível.

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Eu peço outra e outra e outra e outra. Eu não sei ter limites, eu desconheço a hora de parar. Em um momento de desespero, à beira da saída de emergência, eu me escoraria na porta e, deslizando por ela, chorando, eu pediria desculpas ao meu corpo por essa resistência em tratá-lo bem. Porque, é patético, mas parece que eu o odeio – talvez tanto quanto tu odeias o teu corpo com seu pequenino monstro nas artérias, talvez tanto quanto ele odeia o corpo dele com sua tradição de cinco mil anos. Ódio profundo de toda materialidade orgânica, de todo carbono-hidrogênio-oxigênio: impossibilidade de ocupar essa carne vistosa e falível (corruptível, maculável, matável). Nuvens negras, raios e trovões nunca me assustaram exatamente por este motivo: eu sou um pouco deles também. Maremotos, terremotos, tsunamis, erupções: só peço que não me matem lentamente. Porque, como eu disse, já não há mais pontilhado que me separa deles, não há membrana, nem porosidade: eles são um pouco de mim. Mesmo que eu sobrevoasse toda a terra conhecida, e que todos os pelos/cabelos e todas as gotas de todos os líquidos se deitassem eu todas as minhas camas, meus olhos conheceriam nenhuma nuvem além daquelas que eu atravessei: não há maremoto pior que aquele quando eu choro, nem tsunami melhor que quando eu gozo, nem erupção mais cintilante que quando eu grito.

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Eu peço mais uma e mais uma e mais uma e mais uma. Porque eu desconheço limites, eu não habito minhas praias brancas, eu minto e eu omito: um verdadeiro pequenino monstro. E, mesmo sendo tudo isso, até amendoins me oferecem sem eu pedir. Que mundo é esse que recompensa pequenos monstros? Espinhas na cara, purulentas, vermelhas, inchadas: compõem o mapa de um grande SIM que eu disse à vida. Meu rosto diz SIM em toda sua extensão, com sorriso ou com lágrimas. Me surpreende que o rapaz de 14 anos mais ali adiante reconheça o SIM do meu rosto – porque, talvez, suas espinhas jovens ainda não saibam bem que caminho desenhar [porque são muitos os caminhos nessa idade]. As minhas espinhas, com trinta anos de existência, desenham um SIM gigante no meu rosto. Peles de bebê nunca me atraíram, tu vê, que curioso: sempre preferi peles manchadas, marcadas, grossas de barba, cicatrizadas; enfim, peles que tenham o que dizer e dizem. Peles que sentiram, peles que fazem sentir. Sempre detestei peles lisas: gosto da montanha russa das peles esburacadas. Meu grande SIM esburacado. Meu grande SIM à vida, estampado no meu rosto com espinhas inflamadas. Não há remédio que cure o meu SIM: ele é um mapa, um percurso. O pequenino monstro acha suas coorden[...]