Uma chuva bem fina

Eles me diziam que eu estava errado: ninguém chove, ninguém amanhece, ninguém tem crepúsculos. Eu argumentava que nem todos e que nem todas, de fato, poderiam amanhecer [é duro, é difícil, é cruel amanhecer em vida]. Eu argumentava que eu já vira muitos e muitas choverem, peneirando pingos de chuva e tomando-os, espalhando-os pela pele. Mas é possível, é absolutamente possível. Há restos em dois dos seis ralos da minha casa, e nesses dois ralos estão retidos restos, fragmentos orgânicos que represam a água. Ralos, restos retidos, represando. Há três toalhas para serem lavadas, peças de roupas em um monte. Há bolinhas de pó no pé da minha estante da sala que se encostam ali nos cantos, e a estante está quebrada, pendendo para o lado. Esta é uma casa insegura. Esta é uma casa que tem um crepúsculo, eu posso dizer que minha casa tem um crepúsculo. Mas ela tem, igualmente, uma aurora, uma manhã de festa, uma luz que é própria do alvorecer e que perpassa todas as suas paredes, que brilha das janelas para fora, que ilumina o chão: uma luz de dia que nasce – por mais que dias não nasçam, se eu assim escrever, todos e todas entenderão de que luz eu estou falando e acharão lindo (como eles dizem no primeiro dos mil platôs). Então por que razão, será, que eu mesmo não posso chover? Eu posso, é possível: eu chovo uma chuva bem fina, mais leve que o vento, e o vento rouba meus pingos e os faz tremer no ar. Uma chuva bem fina é essa que eu chovo, sem raios nem trovões, sem inundações ou granizos. Quase uma garoa, mas um pouco mais vigorosa que uma garoa, do tipo que molha sorrindo. Eu chovo a chuva que te faz dormir.