[...]ência da criação. às vezes eu sento e escrevo, menos por necessidade e mais como um exercício. ou como uma massagem que destensiona um feixe muscular. como um mergulho no qual não respiro, envolto num silêncio submerso. e volto à vida. mas enquanto escrevo estou morto. escrevo do meu túmulo. chegou ao fim um domingo precioso. há 51 anos meus pais se casavam. se eu pudesse, se eu lá estivesse, interromperia o ritual. mostraria fotografias minhas e dos meus irmãos como evidências do porquê aquele casório não poderia acontecer - ou melhor, poderia, mas ao custo de 3 ou 4 vidas. e de fato eu estava lá, virtualmente: eu estava no casamento dos meus pais há 51 anos num porvir. ali, e talvez um pouco antes ainda, eu comecei a me fazer. tenho 51 anos hoje, talvez um pouco mais velho ainda. o domingo termina com chuva. com o apartamento limpo. com a geladeira cheia. com uma garrafa de vinho pela metade. com certa dor de estômago. me sinto pobre: nos remanejos da mudança de apartamento, fiz de uma fruteira meu criado-mudo. e o fogão está atravessado na cozinha, impedindo a passagem para a área de serviço. o sabonete que passei a usar é dos mais baratos e deixa um cheiro fino, frágil, sobre a pele. era o que eu poderia pagar para continuar tomando 2 banhos por dia. preferi diminuir a quantidade de comida a racionar as chuveiradas. faço 3 refeições simples por dia, sem transbordamentos e sem repetições. a manteiga se espalha discretamente sobre a torrada. a granola é medida na balança. sim, geralmente me deito com fome e pego no sono com a barriga roncando, aguardo até o próximo dia para o café da manhã. sonho com comidas variadas. mas ou diminuo a compra de comida, a ingestão de comida, ou tomo menos banhos por dia. no meu orçamento não cabem igualmente o litro de leite e o sabonete glicerinado. o nome disso é desespero e é o que entretece o fio confuso da vida por esses dias. o desespero de racionar a comida e o sabonete para manter-se vivo, para manter-se limpo. me sinto pobre. [...]