[...]ua de cabeça baixa. olhando diretamente pro chão, no máximo mais alguns metros para me certificar de que não esbarro em alguém. mas bem que eu queria bater em alguém. de qualquer modo, tenho olhado muito o chão, e hoje especialmente foi um dia de chão. quando dobrei numa esquina levantei a cabeça, só pra confirmar que não esbarraria em alguém. mas bem que eu queria bater em alguém. eu vi um senhor em situação de rua sentado na calçada, escorado num muro, cuja posição fez doer minha coluna cervical. um pouco mais adiante, uma senhora idosa empurrava um triciclo no qual pedalava um rapaz com síndrome de down. naqueles poucos metros de chão havia tanta realidade, concretude crua da vida sem banho de glória (sem banho, simplesmente). eis o movimento lento do triciclo, que se movia um pouco pela força nos pedais e um pouco pelo mão que empurrava o banco, observado do chão pelo senhor deitado numa posição dolorosa. havia um pouco de dor e um pouco de cinismo nessa cena. tudo se ligava por uma resignação seca: esses personagens eram o que eram, e eram o que suas vidas permitiu que fossem. será que na sua posição dolorosa o senhor em situação de rua sabia que era um refugiado em seu próprio país, expulso da esfera cidadã, sentenciado a perambular sem casa por um crime que não cometeu? será que a mãe-natureza, tão correta em seus caminhos misteriosos, havia presenteado um corpo com um cromossomo a mais sem que nenhuma revolta ou preconceito lhe viesse investir desde já? esses corpos testemunharam histórias de quê? continuei a caminhar e baixei a cabeça. eu não resolveria os problemas que só eu pensei ter encontrado nessa cena. tampouco eu estava certo a respeito da dor, do cinismo e da resignação. talvez só em mim esses sentimentos habitassem. mais adiante, dobrando outras várias esquinas, ia à minha frente um rapaz que teve algum tipo de paralisia. ele andava, mas o fazia com esforços do corpo todo, movendo braços e cabeça. a cadência do seu passo era mais marcada pelo pisar, batendo a sola do tênis no chão. e ele avançava pela calçada, sabendo onde queria ir. ele sabia-se todo, estava presente em si em cada passo, em cada pisada, em cada esforço para ir onde queria ir. seu veículo parecia atrasá-lo. mas ele não se importava, ou não parecia se importar: olhava ora para a calçada, ora para o horizonte. cuidava a superfície por onde passava e calculava com a vista o quanto mais faltava para alcançar algo. era alguém se movendo. mover-se é cuidar por onde passa e saber onde chegar. e o rapaz era tão bonito. ele parecia sorrir. talvez pelo fato de eu tê-lo achado bonito, eu diminuí a velocidade da minha caminhada para preservar-me no seu encalço. talvez por eu tê-lo achado confiante eu quis zelar por ele, como numa fantasia de apoio para que ele seguisse seu caminho mais seguro ainda. de repente fui tomado por um delírio: estremeci ao pensar no risco de que ele pudesse tropeçar em algum buraco ou pedra ou paralelepípedo e cair no chão, machucar-se. de repente inventei para ele uma fragilidade que, embora real (de fato havia buracos e pedras e paralelepípedos soltos pelas calçadas, que poderiam fazê-lo tropeçar), subtraía dele autonomia. ele parecia depender totalmente de mim para não cair naquele momento. eu já queria carregá-lo, salvá-lo de todas as pedras do seu caminho. com isso eu confiscava do rapaz aquilo que por primeiro eu havia nele admirado: sua autenticidade irreverente de se mover, de estar no mundo. canibalmente eu fantasiava engolir (incorporar) aquilo que de belo eu havia encontrado naquele ser. baixei a cabeça, olhei para o chão, apressei o meu passo. distanciei-me do rapaz, ainda agarrado ao som dos seus pés batendo no chão. enunciei mentalmente "não tropece, não tropece...". e fui eu quem tropeçou na escadaria do prédio. [...]