[...]pre me vi como uma ficção que se atualizava a cada dia. e eu nunca era verdadeiramente aquele personagem que eu criara. acabava sendo um outro, mais desgastado, mais puído, aparentando ser mais velho do que eu era. eu produzia um script para ser um e dava sempre noutro.

eu era sempre uma versão mais perseverante de mim mesmo do que eu alardeava. eu pensava em morrer, em desistir da vida... e, ao mesmo tempo, eu tomava dois banhos por dia e escovava os dentes quatro vezes ao dia e me preocupava com a taxa de glicose. não me parecem atitudes de quem estivesse aguardando a morte. do que adianta o enxaguante bucal no momento de bater as botas?

porque quando tudo dava errado eu queria comer doces. ou tomar um café com leite ao sol, se fosse inverno. ou um pote de sorvete importado, se fosse verão. eu era este tipo de farsante: a vida me dava uma rasteira, e eu lambia os beiços com açúcar. eu não me deixava abater, mas vivia escrevendo textos tristes para comover os amigos. com qual objetivo eu queria convencer alguém de que eu era um coitado?

obcecado por limpeza. por desinfetantes de toda ordem, por aromatizadores; doido por borrifadores de álcool para desinfecção de superfícies, por escovas e esponjas de limpeza pesada; aficcionado pela água sanitária para jogar nos ralos. eu queria mesmo era viver num reino pequeno e salubre onde eu pudesse espalhar minha história discreta. nenhuma cor gritante nas paredes e pouquíssimos objetos de decoração. mas a disposição dos móveis nas peças, o brilho das superfícies, a ventilação e iluminação dos espaços e o cheiro - sobretudo o cheiro - de chão e teto limpos, saudáveis, refrescantes. seria esse um túmulo higienizado que eu organizava para meu fim?

domingos eram dias especiais: necrodays de pura tristeza e, simultaneamente, o momento da semana em que eu trocava as roupas de banho, cama e os panos de prato da cozinha. lava cada um deles com produtos específicos e esterilizava todos. era de toalhas novas que meu velório precisava?