O(s) Cara(s) dos Azulejos

O Cara dos Azulejos está aqui em casa. Ou melhor, Os Caras dos Azulejos, pluralizando tudo.

Seu companheiro é seu exterior constitutivo: se o Cara dos Azulejos é bonito, seu companheiro é feio. Se o Cara dos Azulejos é magro, seu companheiro é gordo. Se o Cara dos Azulejos é jovem, seu companheiro é velho. Se o Cara dos Azulejos é séquissi, seu companheiro é brochante. O Cara dos Azulejos só adquire sentido quando visto simultaneamente ao seu companheiro. O que um é o outro não é. Só mesmo em conto pornô de revista gay que acontece de os dois Caras dos Azulejos serem séquissis, ao mesmo tempo e de maneira sobreposta, porque na vida nossa de cada dia temos que lidar com toda essa borda de seres antípodas, de seres que não são, de seres que se opõem e se afastam.

Os problemas gerais desta intervenção dentro dos meus limites não são estes, todavia. Os problemas são a posse do meu banheiro e a pretensa revitalização das minhas paredes. Em primeiro lugar, co-habitam dois homens no meu banheiro já há duas horas. Pode parecer gostoso, mas é péssimo porque onde, ó raios, eu vou mijar? Abalei-me ainda há pouco até o andar térreo do prédio para poder fazer xixi. Elegantíssimo, aproveitei a desculpa de ter sacos de lixo para levar para a lixeira comum do condomínio para, de maneira discreta, utilizar o banheiro das áreas comuns do prédio. O problema do xixi estaria parcialmente resolvido, contudo, se Os Caras dos Azulejos não fossem plurais, mas singulares. Mas prefiro não cogitar essa hipótese e manter a discussão em torno da posse arbitrária da peça mais imprescindível desta humilde casa pequeno-burguesa de classe média gaúcha do fim da primeira década do século XXI. Em segundo lugar, quem disse que minhas paredes precisam ser reformadas? Onde está escrito que qualquer parede cujos azulejos descolam precisam ser objeto de preocupação? Esteticamente, os espaços vazios de azulejos não podem ser uma maneira charmosa representar que tudo aquilo que não faz mais sentido pra mim descola-se de mim, cai e estilhaça? Tudo aquilo que através de tensões, extensões, contrações e contradições não combinam mais comigo, não se colam mais a mim, não mantêm mais minha unidade, passam a não mais me constituir e são desarticuladas de mim, desatachadas de mim, descosturadas de mim estão simbolizadas nos azulejos caídos. Os lugares vazios nas minhas paredes, antes de serem lacunas ou faltas, podem ser nós de possibilidades, pontos férteis, fendas de perguntas ininteligíveis que faço a mim mesmo e aos outros, lugares que potencialmente podem trazer mudanças. As paredes descascadas do meu apartamento podem, por isso, ser encaradas como um manifesto político.

Na saída para o almoço, eles prometem voltar. Como eu disse no início, um é o oposto do outro: se um me desvia o olhar, o outro me encara. E me encarando, com um olhar oblíquo de azulejista dissimulado, um deles parece me ser cúmplice de um certo crime contra a reprodução, parece ser suspeito junto comigo de uma certa contravenção dos prazeres. O Cara dos Azulejos, bonito/magro/jovem/séquissi, parece fazer uso dos banheiros em geral para algo mais que a reposição de azulejos que caem.