Repulsivo?

O dinheiro me abandonou. Pôs suas vestes e deu de costas, seguindo em linha reta, sem olhar pra trás, até virar um ponto difuso num horizonte sem luz. Atravessei o limite da minha conta.

Vocês já viram o preço do pão 7 grãos? $4,19! O preço do leite desnatado Santa Clara, o das vaquinhas? $1,49! O preço do quilo da mussarella? $21,90! O preço do requeijão? Chega a obscenos $4!!!!

Claro, isso pra quem se importa com gorduras saturadas, gorduras trans e com seu abdome tanquinho. Porque pra quem tem simpatia por vermes, cartilagens e pedaços de osso moídos junto com a carne de segunda, a vida é sempre (foi sempre) mais barata. E mais longa também, porque assim as pessoas convivem diariamente com condições adversas, o que faz de seus corpos os mais resistentes. Hoje pela manhã, quando eu estava indo pra faculdade, passei por um morador de rua que estava deitado na calçada, exibindo uma ereção de dar inveja ao Rocco Siffredi. Belo o rapaz, cujo rosto conseguia manter intactos os longos e curvados cílios, as sobrancelhas grossas e a boca carnuda, os cabelos encaracolados, desgrenhados de castanho claro, com uma barba por fazer, apesar da bem provável história de dureza que aquele corpo tem pra contar. E apesar de todos os seus piolhos, chatos e berne que ali se escondiam. Que corpo é esse, meu deus, que a despeito de todas as provações rompe com seus próprios limites e consegue fazer latejar o membro, ou ostentar beleza? Duas vovós que vinham atrás de mim ficaram chocadas. Não sei se com a beleza do rapaz ou com o estado geral de sua excitação, aposto nesta última, porque uma disse pra outra “ai, que horror, não olha! Que horror...” Acho que em toda suas vidas elas jamais pensariam chegar tão perto de algo tão assustadoramente sedutor e, ao mesmo tempo, tão repulsivo.

Repulsivo? O que nos é repulsivo? O que nos é limítrofe, o que nos leva às raias de qualquer sentimento? Pensando mais perigosamente ainda, o que nos leva a atravessar as fronteiras do desejável, do factível, do aceitável, do repulsivo e do abjeto? O que se esconde para além da linha que proibiu a mim ou às vovós de nos deitar ali com o morador de rua, perguntar por seu nome, saber se queria comer, tomar um banho, escovar os dentes, ir pro colégio, faculdade, especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado? Minha sugestão é que, para além desta linha, definitivamente nada disso que recém elenquei está. Porque tudo isso que recém elenquei é o caminho centrípeto das fronteiras, é o caminho para seu interior bem-organizado, e não seu caminho centrífugo, para onde reina o impensável. Porque tudo isso que recém elenquei vai do abjeto para o desejável, direto e sem escalas, e não do desejável para o abjeto. E acredito ser mais interessante pensarmos o quanto tudo isso que nos rege, que nos gesta e que nos administra, todas as normas que, num tom degradê de silêncio, vão do desejável ao abjeto são construídas, contingentes e reversíveis.

Nesse caso, prefiro não dar indícios do que poderia existir para além da linha que fez a mim ou as duas vovós observar com estupefação o corpo indócil daquele morador de rua. Porque, para além das linhas do aceitável, já no domínio da repulsão, é que fica o caos nosso de cada dia, é onde fica o desespero e a delícia de atravessar limites. Prefiro deixar o morador de rua, com sua ereção e com sua beleza, lá onde estava. Admito aqui, com os neomarxistas, que essa frase deixa implícita uma conformação com a pobreza, com a injustiça social e com o capitalismo. Mas ressalto que prefiro deixá-lo lá onde estava para que ou eu ou as vovós fôssemos até ele. Fazer do morador de rua um pós-doutor é muito brega. Fazer as vovós - ou eu mesmo - desposar o morador de rua é infinitamente mais interessante e provocador.

Tudo isso pra dizer sobre limites. Limite negativo da conta bancária. Não é cheque especial, é universitário, mas mesmo assim é o caos e o desespero quando cruzo a linha que separa o – do +.