Peças soltas de um quebra-cabeças

Quando caiu a noite, tomei mais um banho para esperá-lo. E ele chegou. Nós jantamos e conversamos um pouco. Ele tem idéias, tem boa alma. De sorriso fácil, ele constrange minha seriedade. Um bobo, um tolo, um ingênuo, um romântico que, como diz a música, “foi chegando de mansinho, se instalou devagarzinho, foi ficando até ficar”. E fomos dormir, eu e ele, abraçados, de conchinha, felizes pelo fato de não estarmos jogados soltos no mundo como pontas de um quebra-cabeças que começou a ser montado pelo miolo, mas também cientes de que a vida paralela que nos dispomos a levar jamais vai se justapor, jamais será completa, que nem tudo aquilo que um deseja que o outro seja de fato virá a ser, que nunca será como os livros e as músicas se dispõem a contar. Somos peças soltas de um quebra-cabeças, peças que não se encaixam, mas que insistem em permanecer juntas, compondo uma imagem estranha aos olhos dos outros, imagem arbitrária, desafiadora, que causa dúvidas e apreensões, mas que por isso mesmo é bela e cheia de vida. Dei-me por conta que eu era feliz. Foi com humildade e franqueza que aceitamos os limites que nos impomos mutuamente e dormimos tranqüilos para acordar no dia seguinte, prontos para escrever mais um dia das nossas autobiografias não-autorizadas.