Rascunho de mim

07 de maio - o dia que não acabou. A quarta-feira foi um dia extenuante. Ela já terminou oficialmente há 50 minutos, mas os minutos são apenas convenções que não dizem sobre quando um sentimento acaba ou outro começa. Portanto, de certa forma, ainda estou na quarta-feira. De outras formas, permanecerei nesta quarta-feira, imóvel, tentando entender. Tentando me entender.
Há vezes em que sinto um peso, uma dor, uma fadiga. Meu corpo cansa e minha mente fica embaçada como que atrapalhando o pensamento. E os olhos não vêem direito, e os braços não alcançam, as pernas não caminham. Há vezes em que acho que posso (que devo?) fazer o peso cair e espatifar-se no chão. Os músculos dos meus ombros sofrem de contraturas terríveis: sustentam uma cabeça densa, apinhada de pensamentos que forçam sua massa. Tenho aqui uma cabeça que dói muito às vezes. Tenho um peito que não soluça, uma voz que não embarga, cílios que não umedecem. O fio do novelo enosado que trago comigo é muito extenso pra ser medido e muito intenso pra ser carregado.
Chego ao fim desta quarta assim. Como um rascunho de mim. Caminhei tanto que meus joelhos doem, mas é bem verdade que finjo não ver meu corpo há meses e meus músculos, todos eles, ou estão tensos ou estão fracos. Comi uma fatia de pão às 8 da manhã, depois um prato de carne com farofa ao meio-dia e meia. Café a conta gotas à tarde. Uma xícara de leite há uns 20 mintuos. Como eu disse, finjo não ver meu corpo. Suei, gaguejei, dormi em pé no ônibus e desejei nunca ter levantado da cama aos cinco anos de idade. Cheguei em casa e fui direto lavar minhas mãos no banheiro quando, meu deus!, me olhei no espelho. Havia anos, anos, anos que não acontecia de eu não me reconhecer. Eu estava pálido, de uma branquidade anêmica, com escuras olheiras, bochechas magras, barba por fazer, boca entreaberta como que sem fôlego e um profundo olhar triste. Me choquei mesmo foi com este último porque o vazio do meu olhar eu só vira outra vez num cadáver na Faculdade de Medicina da PUC/RS quando por ocasião de uma visita guiada aos prédios da universidade promovida pelo colégio onde eu estudava. Era o cadáver de uma mulher de seus sessenta anos que, segundo a estagiária que atendeu a mim e meus colegas, fora doado para pesquisa porque provavelmente era uma mendiga e ninguém havia reclamado o corpo depois de sua morte. Seus olhos mortos pareciam ainda dizer do desespero, ou apenas do ressentimento, em terem morrido sós.
Que parte de mim, será?, que morreu sozinha hoje a ponto de meus olhos trazerem sua morte?