Uma extensão do texto sangüíneo

Me sentei no balcão do bar com um amigo de longa data. Entre os copos de cerveja que subiam e desciam, entre a música e os vídeos, entre as pessoas estranhas e cheias de força que foram chegando aos poucos e se sentando por perto, entre um olhar de desejo para um garçon e outro de reprovação para a feiúra de um cliente, eu me dei conta de que eu não tinha nada pra contar. Ou tinha, mas meu amigo não entenderia. Ou entenderia, mas para ele não teria importância nenhuma. Ele não se afetaria com nada que eu pudesse lhe contar. Mas também, por outro lado, talvez ele tenha se afetado com essa minha falta generalizada de novidades, com essa apatia uniforme que eu trazia. Houve um silêncio entre nós, inquebrável até mesmo pela mais atroz insensibilidade das vozes dos que nos rodeavam, imperturbável inclusive pelos fartos e brilhosos cabelos negros do garçon.

Voltei pra casa a pé pisando nas pedras úmidas da chuva que recém caíra. Para cada passo firme no chão havia um certo balanço, uma certa chacoalhada, um movimento gelationoso do acúmulo adiposo em meu abdome. Me assustei com minha condição: como eu cheguei a ser do jeito que sou? Por que motivos eu permiti, ou por que motivos eu quis ficar assim? Para cada passo um grau a mais no incômodo com minha calça; eu pus a culpa na calça velha, de numeração errada, com um corte cafona, de cintura alta, pus nela a culpa pela manta de gordura. Eis que vi um grupo de homens bêbados, tão bêbados quanto eu ficara na noite anterior, orgulhosos de suas camisetas rubras de campeão gaúcho, anunciando suas masculinidades numa gramática cuidadosa e explícita que se articulava com seus corpos robustos. Masculinidades de pêlos no rosto e nas costas. Como será que eles chegaram a ser do jeito que são, eu me perguntei. Por que motivos eles se permitiram, por que motivos eles quiseram? Me lembrei de Gilles Deleuze com sua “dobra”: para ele, cada um de nós é uma “dobra” do exterior para o interior, e essa “dobra” pode ser des-dobrada, re-dobrada toda vez que nos afetamos por algo. E lancei um novo olhar sobre os grupos de transeuntes e vi uma noite plissada, cheia de entradas côncavas. Eu mesmo era uma dobra, uma prega, um desnível do exterior em direção àquilo que chamo de “eu”.
Daí passou por mim uma anã manca. Renga, coxa, a anã reclamava da sua jornada de trabalho dado o avançado horário da noite. Como ela chegou a ser o que é? E por um momento eu me irritei com essas perguntas inúteis que faço enquanto caminho na rua porque é infrutífero tentar remontar na minha mente o estado semântico da vida de cada um que por mim passa. Simplesmente porque não há como tirar de todo mundo um denominador comum, uma opinião recorrente, um mesmo conjunto de impressões sobre a vitória deste ou daquele time de futebol, sobre a gordura que se acumula sobre meu abdome, sobre a beleza do garçon. A anã manca me ensinou sobre a polissemia das reentrâncias, das dobras, das pregas.