Entrevista com o, os, a, as autor, autora, autores

- Ouvi dizer que tu não és um, és vários. Isso é verdade?

- (risos) Veja que a pergunta traz em si suas próprias armadilhas. Em primeiro lugar, a expressão “ouvi dizer” já não combina com a palavra “verdade”, embora para alguns “a voz do povo é a voz de deus” (risos). Quando se ouve dizer, assim, num comentário ao pé do ouvido, num murmúrio longínquo, enfim, quando alguma informação sem autoria nos chega, é possível que nada dela se extraía a não ser calúnias com vontade de verdade. Acusações sérias e graves como essa normalmente não são feitas sem que seu autor, ou seus autores, tenham nome, endereço, cep, celular, email, perfil no orkut, tudo revelado. Isso porque muitos querem pra si o orgulho de que tal acusação seja verdadeira. Segundo, ser “um” é um sonho tão patético! Jamais somos “um! Na nossa masturbação diária em frente ao computador somos os mesmos daqueles que somos quando sentamos à mesa para almoçar com nossos pais, nossos filhos, nossos homens ou nossas mulheres? Por que motivo, então, me cobram ser um ou uma quando escrevo, ou quando escrevemos, para esse blog e outro ou outras quando saio ou quando saímos pra comprar pão? A questão de eu ser eu, ou não ser eu, ou de ser eu e mais outros tantos, entre outros tantos eus, é tão óbvia quanto irrelevante, porque tudo que aqui há também está nas novelas da televisão, nas letras das músicas do rádio e da internet, nas notícias dos jornais, em suma, as histórias que aqui se leem não são minhas ou dele, ou dela. São sobretudo nossas! São produtos de um tempo específico, do nosso tempo. E, perdoa-me, me parece muito antiquado perguntar “é verdade?” para um entrevistado, ou para vários entrevistados (risos).

- Por quê?

- Porque a questão da verdade não é formulada desse jeito, “isto que afirmo é verdadeiro ou falso”, não sem antes poder ser formulada no interior de um campo de possibilidades do verdadeiro.

- Podes explicar melhor?

- Sim, claro, sou generoso, ou generosa, ou somos generosos com as mentes menos brilhantes. Não faria sentido perguntar para um escriba da Mesopotâmia se ele era um ou vários autores dos pergaminhos escritos em seu colo, já que não havia muitos que soubessem ler e escrever. Não faria sentido perguntar para um remetente se ele ou ela era um ou vários autores da epístola que viajava de Veneza à Londres no século XVII. Isso porque, em ambas as épocas, as possibilidades técnicas de escrita dificultavam que houvesse mais de um autor para um mesmo texto, o que não significa que um escriba não pudesse continuar escrevendo um pergaminho inacabado, ou que algum impostor não pudesse falsificar a letra de um amante e escrevesse uma carta cuja autoria fosse uma – abre aspas – falsidade ideológica – fecha aspas. Com isso, quero ou queremos sublinhar que justamente numa época como a nossa, em que o teclado dos computadores digita letras sem caligrafia nas folhas em branco, em que existe um espaço como a internet em que os escritores de textos podem permanecer anônimos, nesta nossa época se faz possível um certo conjunto de dúvidas sobre a autoria de alguns textos que vemos circular. Nesta nossa época é possível duvidar que não exista apenas um autor ou uma autora para um ou vários textos. Duvida-se, de um lado, que um autor ou uma autora tenha escrito vários textos, e se duvida mais ainda que vários autores tenham escrito apenas um texto! Nessa nossa época é que se faz possível questionar-se sobre a verdade ou a falsidade de afirmações do tipo “você é um autor” ou “você são vários autores”.

- Obrigado, sua resposta foi bastante esclarecedora. Mas voltemos a um ponto: o da caligrafia. Tu achas que o fato de os textos, hoje em dia, serem digitados no computador faz com que a caligrafia se perca? A digitação desconstrói essa identidade da letra desenhada com o próprio punho?