Continuação da entrevista

- (...) Mas voltemos a um ponto: o da caligrafia. Tu achas que o fato de os textos, hoje em dia, serem digitados no computador faz com que a caligrafia se perca? A digitação desconstrói essa identidade da letra desenhada com o próprio punho?

- Essa pergunta me parece ou nos parece interessante. Penso ou pensamos que não faz sentido falar numa perda da caligrafia, ou numa perda da identidade da escrita de próprio punho. A princípio, tenho ou temos sempre a vontade ou o desejo de entrever a positividade dos acontecimentos: a caligrafia não se desfaz com os teclados dos computadores, ela é reinventada. Pensemos, por exemplo, no quão difícil era entender o que estava escrito numa receita médica. A total confusão das palavras ali escritas, do modo com que elas estavam escritas pelo punho do médico, era ela própria uma relação de poder: somente o médico ou a médica e o farmacêutico ou farmacêutica entendiam o que ali estava – e às vezes nem um nem outro (risos). O paciente, ou o cliente, ou o usuário dos serviços de saúde não decifrava o que estava escrito, apesar de saber sua saúde em estado de dependência daquele texto incompreensível. Se um médico ou uma médica hoje em dia pode escrever sua receita através de um programa de computador e apresentá-la impressa para seu paciente ou seu usuário, isso desfaz muitos mal-entendidos! Digamos que essa – abre aspas – perda da identidade – fecha aspas – da caligrafia médica tem a potencialidade de mudar a relação de poder entre médico e paciente. Pensemos, por outro lado, o quão difundidos eram algumas décadas atrás os tais cadernos de caligrafia. Eu cheguei a fazer muitos exercícios neste caderno, meus pais me estimulavam para isso. Minha mãe, que é professora primária, dizia que isso facilitava o trabalho das professoras e dos professores na correção dos textos dos alunos, sobretudo quando nas séries iniciais, de alfabetização. Ora, os cadernos de caligrafia não passam de uma técnica de disciplinamento dos corpos! Eles efetivamente se constituem numa estratégia de docilização dos corpos, no sentido de compor uma uniformização da letra escrita sob a alegação de prover maior e melhor clareza e compreensão do texto do aluno ou da aluna em processo de alfabetização – o que não passa de um incremento no controle exercido pelo professor ou pela professora sobre seus alunos e alunas. Mais que isso: os cadernos de caligrafia, atuando na uniformização da letra escrita, acabavam por apagar isso que hoje chamamos saudosamente de – abre aspas – identidade da caligrafia – porque visavam a um modo único de escrever. Em suma, essa mudança técnica, conceitual e política que hoje se coloca para o exercício da escrita usando computadores já está inserida na nossa sociedade há muito tempo, mas através de outros processos que historicamente são invisibilizados. O caderno de caligrafia é um deles. A máquina de escrever, a seu tempo, foi outro. Mas o que eu queria ou nós queríamos é sublinhar que, sim, talvez exista atualmente uma descontrução disso que se chama a identidade da caligrafia, mas também me parece ou nos parece importante assinalar o deslocamento dessa suposta identidade do desenho da letra para a forma com que se usa ou se brinca com as palavras, com as vírgulas, com os travessões, com as regras de gramática e uso de expressões coloquiais nos textos escritos e publicados. Da estética visível, que é a caligrafia, para a estética sensível, que é a da compreensão e habilidade para jogar com a linguagem. Isso, é claro, renunciando avidamente esse lugar vazio, o do autor.

- Renunciar ao lugar do autor? Parece-me que tu tens uma certa aversão à noção de identidade...

- (silêncio)...