Continuação da entrevista II

- (...) Parece-me que tu tens uma certa aversão à noção de identidade...

- (silêncio)... Jamais disse ou dissemos que a noção de identidade me ou nos causava aversão. (silêncio). Veja, esse problema, o da identidade, não é apenas uma questão teórico-conceitual, não é apenas um modo de expor ou de descrever as maneiras com que o mundo hoje se produz e as maneiras com que ele é vivido. Dizer “o mundo é assim hoje por causa disso e daquilo”, ou dizer “o que estrutura o mundo hoje é isto e aquilo” são formulações que empobrecem isso mesmo que têm pretensão de explicar: o mundo. Não me ou nos interessa tanto o mundo quanto as pessoas que dele fazem parte, que o sustentam e que fazem do jeito que aí está. (silêncio). Seria possível de levantar a questão do mesmo, da identidade, do idêntico, enquanto função que cruza o domínio da produção das subjetividades de modo contundente. Com isso, sugiro ou sugerimos que O Mesmo, assim escrito, com letras maiúsculas, implanta não exatamente um lugar confortável a se habitar, mas faz aparecer um jogo a partir do qual ele será produzido e re-produzido constantemente. Tenho ou temos um casal de amigos que estão juntos há quase quinze anos e em todo aniversário da relação eles vão ao Mesmo restaurante, comem a Mesma comida, depois vão para o Mesmo ponto da cidade admirar a vista – que não é a Mesma de quinze anos atrás, e por isso eles reclamam – e depois fazem sexo e gozam na Mesma posição. Para este ano, eles planejam renovar ou reafirmar o voto de matrimônio. Perguntamo-nos: é necessário? Respondemos: Sim! Porque O Mesmo precisa, requer, demanda, pede, grita pela reafirmação, pela repetição. (silêncio). O problema da mediocridade me parece ou nos parece que tem a ver diretamente com o jogo do Mesmo, da identidade. É a repetição à exaustão daquilo que é idêntico ao anterior: casamento, família, amor romântico... Mas não só isso! Temos o costume de enxergar com desprezo todos esses valores pequeno-burgueses, assim mesmo, com esse nome, por causa de nossa genealogia marxista. Outrora acreditamos que a revolução da classe oprimida nos libertaria da coisa mais odiosa que pode haver: a própria opressão. E foi então que, depois de investir fortemente na produção desta revolução, nos demos por conta que a classe oprimida também faz uso da opressão. Mais uma vez, nos deparamos com o jogo da identidade: a opressão não está intrínseca à classe e àqueles que a compõem, mas na relação que a classe estabelece com as demais. Há também repetição e mediocridade nesse culto à putaria, à cocaína, à prostituição. Acredito ou acreditamos, contudo, que há muito mais possibilidades de reinvenção de si para aqueles que habitam tais margens, como as da putaria, da cocaína e da prostituição do que para aqueles que insistem na família e no amor romântico como modelos de vida a serem perseguidos, como é o caso desse casal que acabei ou acabamos de mencionar. Eles detestam o fato de a paisagem da cidade ter mudado em quinze anos, ou seja, detestam o movimento que o diferente imprime ao idêntico. As ditas classes oprimidas exerceram opressão idêntica àquela que sofreram, e o jogo do Mesmo se atualizou. Não houve reinvenção nem para as classes oprimidas, nem para meu ou nosso casal de amigos. (silêncio). Haveria rompimento da repetição, talvez, se esses dois amigos que estão juntos há quinze anos cheirassem cocaína no dia de aniversário da sua relação, e pagassem pelos serviços de um profissional do sexo para trepar com eles, e se mesmo depois disso eles estivessem juntos no seu aniversário de dezesseis anos de relação para, então, ir ao Mesmo restaurante e pedir a Mesma comida e perceberem que o tal restaurante tem uma cozinha horrorosa. O que quero ou queremos dizer é que a diferença provoca e desafia a identidade, não no sentido de superá-la para dar-lhe outra identidade, mais reforçada que a anterior, mas no sentido de fazê-la reorganizar seu sentido. (silêncio). Isso porque a diferença não tem um lugar, não tem uma marca, ela não compactua com nenhuma regra do jogo da identidade. (silêncio) E quando falamos em “o autor”, quando lhe atribuímos um nome próprio ou uma coerência à obra por ele ou por ela produzida, estamos endossando o jogo da identidade, o jogo do Mesmo. Seja pela sua caligrafia, seja pela sua estilística. Desculpe-me ou desculpe-nos pelos inúmeros momentos de silêncio. É que essa problemática da identidade é algo que me comove ou nos comove.

- Entendo perfeitamente e louvo sua habilidade em falar de um assunto tão difícil; voltaremos a esse tema em breve. Eu gostaria de esclarecer o seguinte: o que seria isso que tu chamas de reinvenção de si?