"E eu não senti nada"

- Tu achas que vais conseguir lidar com o fim desse relacionamento de maneira fria?

- Talvez sim. Houve um tempo em que trabalhei como bombeiro. E no período em que trabalhei como bombeiro, houve uma enchente bastante grande pelas cidades do interior. Numa dessas cidades, o rio que cortava o município transbordou cerca de quinze metros. Foi realmente horrível. As águas eram turvas, cor marrom, como esses achocolatados que são vendidos nos supermercados. Tivemos que resgatar as pessoas ilhadas, presas em suas casas. Uma comunidade ribeirinha foi quase que totalmente apagada do mapa: cerca de vinte pessoas morreram nesta enchente. E tivemos que resgatar os corpos já sem vida de pessoas afogadas. Resgatamos quase todos os cadáveres em menos de quarenta e oito horas depois de as buscas começarem. Mas só faltou um corpo, de um homem de quarenta e dois anos. Não conseguíamos encontrar seu corpo em nenhum lugar. Levamos cinco dias para encontrá-lo, e à medida que as horas passavam eu ficava mais e mais nervoso, atordoado com o fato de que o corpo estava na água, na água marrom e turva, e que seu processo de decomposição se acelerava em progressão geométrica a cada instante. Cada água não revirada, cada árvore não observada, cada busca mal sucedida era um peso a mais nos meus ombros, porque depois das chuvas intensas o sol brilhou com força e veio um calor insuportável, úmido. Eu tinha medo de encontrar aquele corpo, e era o único que nos faltava (silêncio). Até que o encontramos. Avançadíssimo seu estado de apodrecimento, irreconhecível até para o legista. E eu não senti nada. Não havia mais nada ali, só um monte de vermes uns sobre os outros. Só pude identificar os olhos esbugalhados entre as carnes em decomposição. A expressão dos olhos dos cadáveres é o que de mais aterrador e definitivo eles podem nos legar sobre a vida após a morte: um túnel no vácuo. Toda essa história para dizer que nossa relação, depois de seu fim, terá tanta expressão quanto a dos olhos do cadáver que resgatei naquela enchente.