"Sempre há lugar pra algum tipo de rancor pra quem tem uma boa memória"

- E ainda há algum tipo de rancor?

- Sempre há lugar pra algum tipo de rancor pra quem tem uma boa memória. Mas pensamos que não seja esse o assunto que devemos tratar com essa pergunta. Somos, eu e eles, eu e elas, surpreendidos com novas notícias de edições passadas do seu jornal. Nos surpreende, devemos admitir, que tu estejas aí parado na nossa frente fazendo as perguntas que fazes depois de tudo que viveste. Nós não sobreviveríamos depois de ter experimentado tanto luxo para em seguida cair na maloca do esquecimento e da autoajuda. Porque nesses casos a autoajuda de fato ajuda. Demorou, não é? Pra nós demoraria mais. Ficamos surpreendidos por não existir mais rancor, mais mágoa, mais desencantamento da tua parte. Por que nos lança essa pergunta? Tentas achar em nós uma resposta pra tua dor? De qualquer forma, podemos dizer que sim, existe rancor e mágoa. Mas fazemos deles trampolins para o sucesso. E tu, foste de onde pra onde depois do rancor? Veja que estamos te pondo contra a parede. É chegada a hora dos entrevistados quererem saber mais do entrevistador. Porque há rastros no teu olhar, momentos de deslizamento e de escorregões, em que percebemos claramente que te prendes de corpo & alma a tudo isso do qual hoje falas com boca cheia, cheia de detalhes e de sutilezas, com um certo galanteio, fazendo-se gabar de estar estado lá, de ter dormido lá, de ter sido a governanta da casa. Te perguntamos: há algum tipo de rancor? Porque se não há, deveria haver! Pela tua saúde! É impossível que não haja um sabor grotesco, bitter, ao se ver substituído. Porque os substitutos fizeram bem o teu papel, e até melhor! Não há rancor criando rugas no teu pescoço, ou mágoas se acumulando em torno do teu umbigo, um pouco acima das tuas cristas ilíacas? O corpo é o cartório da mágoa. Veja teus pares: pra onde foram? Qualquer lugar que chegaram, chegaram juntos. E vocês chegaram separados. Não há rancor em estar assim, jogado ao mundo, chegando à velhice sem ter por quem chamar? É triste teu futuro, sem ter uma campainha para apertar nem uma lágrima para ser secada. Vais segurar na mão de quem quando o desespero da carne arruinar o viço das tuas pernas? Porque ele tem toda segurança, e tu não tens ninguém. Vais morrer num corredor, sem parentes. E teu corpo sequer será enterrado: será usado como caderno de rascunhos por estudantes de medicina. Ele terá uma lápide, uma urna funerária, e tu terás um tanque de formol. Isso não causa mágoa? Ele deleita-se com o sol perto da água, e tu tens que contar as moedas para uma sunga? Não há mágoa na pobreza depois de ter experimentado o luxo?, volto a perguntar. O que ainda queres preservando isso tudo? O que te garante as lembranças de um tempo tão doce? Responda às perguntas somente se te convier. Afinal de contas, somos nós os entrevistados.

- (silêncio). As lembranças se devem ao cuidado que ele teve comigo.

- E vai ser ele a trocar tuas fraldas quando estiveres no hospital? O passado só te garante um futuro solitário. Não há admiração, querido. Não há carinho, nem respeito. Há somente pena, compaixão. (silêncio). Muita compaixão, a julgar pelo teu olhar baixo. (silêncio). Jamais vamos nos acostumar com tua pequenez.