Eu não sou um solitário

Numa tarde tão tranquila como esta, eu não sou um solitário. Meus vizinhos não estão em casa – e a criança barulhenta a quem eles deram a luz se foi com eles –, dá pra escutar os pássaros cantando lá longe, assim como se distingue claramente o som do Renato Russo cantando “Eduardo e Mônica” em algum lar próximo do som dos carros passando na rua. Até o som – eu escrevi ‘som’, e não barulho – da geladeira funcionando, até esse som toma corpo. Como companhia, alguns insetos com asas que voam pela casa procurando luz – eu não os mato, nem os esmago, eu os deixo ali como isso que são: companhias. É um dia cinza. É um dia fresco. E nadando nesses espaços e nesses tempos, eu vou me perdendo nas leituras e nos pensamentos, nos sons e movimentos da minha digestão. Não me sinto deixado, preterido, não me sinto indo embora: me sinto chegando, com malas cheias, em uma nova casa como se essa fosse uma manhã de festa – o novo morador recém chegou!
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Há tempos eu vinha observando nas calçadas algumas manchas escuras, como se fossem imensos pingos negros no concreto.
Com o tempo, percebi que alguns desses grandes pingos esparramados nas calçadas traziam rastros de comida não digerida. Tratavam-se, portanto, de vômitos de pessoas, vômitos vomitados ali e que se incrustaram no concreto das calçadas, ao sol e à chuva, expostos à poeira do cotidiano, que traziam os sucos gástricos alheios e esses iam oxidando (?) em contato com o ar: deveras, eram pedaços de corpos que se decompunham e escureciam, marcando o chão.
Eu os observava porque, ao caminhar pela rua, raramente olhava para os lados, para frente e, muito menos, para cima. Eu costumava olhar sempre pra baixo, pro chão onde eu pisava.
E eu ficava recontando as histórias desses vômitos, não porque eu goste de vômitos, mas porque me dava prazer o exercício de contar histórias de pedaços de corpos que eu nunca conheci. Adoro criar histórias, inventar histórias para os corpos e para seus pedaços. Eu gosto de inventar vida.
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Pois bem: sonhei na noite passada que eu chegava no pátio da casa onde eu cresci. O espaço estava bastante sujo, cheio de vômitos e de lixo orgânico que vinha apodrecendo. Eu me pus a limpar o espaço com muita vontade, com muito empenho, e eu não entendia o motivo pelo qual eu empunhava com tanto ardor a vassoura e a mangueira para limpar aquele ambiente. Foi com certo horror, misturado a um sentimento de incompetência, que percebi vermes se multiplicando no lixo e na sujeira que eu me propunha a limpar com tanto esmero. Desisti. Mas antes de ir embora, agarrei um cão ainda filhote que estava ali, sobre-vivendo naquele espaço imundo. Ainda sonhando, dei-me por conta da razão que me fazia querer limpar o pátio da minha casa: era preciso resgatar e preservar o que de vida a ser vivida ainda restava em mim.
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Parei de olhar o chão enquanto caminho. Tropeço, é verdade. Mas não perco, como antes perdia, o tanto de beleza que há ao redor da minha caminhada.
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É a minha história que precisa ser criada.