Suor de umedecer a cama

Entrei em pânico, desesperei. Acordei, e os lençóis estavam úmidos, o travesseiro também. Suei dormindo, por calor ou enfermidade, e molhei a cama.

Era medo, angústia, reação química do relaxante muscular em alta dose? Fiquei desnorteado: o que aquilo significava? Talvez eu quisesse dizer algo a alguém, talvez eu quisesse falar algo, ou talvez meu corpo quisesse gritar comigo. Acordei e estava tudo molhado, úmido; tive medo.

Eu tirei todas as minhas coisas da tua casa. Primeiro minhas cuecas de dormir, depois minhas roupas de ir trabalhar. Meus chinelos, minhas meias. Tirei minha foto, diminui a frequência do meu corpo na tua cama. Recolhi meus restos todos e só deixei a escova de dentes. Tu vais dizer que eu estou fugindo, que eu estou indo embora, que eu estou me exilando. Não é verdade. É que penso que o teu espaço tem que ter a tua cara – teus lençóis secos, bem estendidos, fotos tuas e daqueles que entraram e ficaram na tua vida, o teu cheiro, que as tuas roupas reinem uma monarquia morna para elas próprias (minhas roupas não querem ser tuas súditas). Não estou me retirando pra ir embora; estou saindo pra que tu possa ter o lugar que é teu de direito. Vai, guri, vai ganhar o que é teu! Eu não sou teu, eu sou meu. Também se te devolvi as coisas tuas que estavam aqui não foi porque queria que tu fosse embora. Devolvi porque são tuas, tu cuida delas e não eu. Eu cuido das minhas e tu cuida das tuas.

Mas nesse jogo de regiões bem delimitadas, existe a possibilidade de criarmos uma coisa outra, uma convivência nossa, um espaço nosso. Podemos viver, e de um jeito bom, algo a se compartilhar. E esse algo a se compartilhar não vai se colar a espaços ou territórios, não o acharemos em gavetas ou em portas de roupeiros, não vai se aderir a restos de um na casa do outro. Um terceiro corpo (o meu junto do teu), uma terceira vida (a minha junto da tua) não é a mesma coisa que eu deixar de viver a minha pra viver a tua, nem vice-versa. É um processo de criação mesmo, um processo de criação de uma outra vida – a nossa. Se é verdade que tirei aos poucos as minhas coisas da tua casa (tu dirias “até tiraste o teu corpo do meu”), em contrapartida eu te dei a chave da minha casa. Há quem diga que, simbolicamente, te dei tudo que existe aqui dentro; eu não seria tão radical. Mas é fato que te dei confiança de entrar e sair de onde eu moro a hora que tu quiser. É esse passo adiante, de confiar, que eu acho que precisa estar presente no nosso convívio. É isso que me importa, e não coisas móveis, compráveis, transferíveis e deterioráveis.

Não posso deixar de lembrá-lo que houve um dia em que deixamos cair no chão a confiança. Quebrou-se. Eu não tenho problemas com isso: acho que os sentimentos estão aí pra serem quebrados mesmo, pra serem renovados, reciclados, experimentados de outros modos. Não tenho problemas em lidar com a confiança craquelada, rachada, recomposta, à qual sempre falta uma parte. Porque uma vez quebrado, o sentimento é diferente do que era no início. Por mim, beleza. Não acredito em e nem desejo sentimentos puros. Nossa confiança não é pura, ela já foi feita e refeita muitas vezes. Repito: por mim, tudo bem, sentimentos precisam ser recicláveis. O que te estranha é o fato de que fui mudando junto com ela, fui craquelando junto com ela, fui quebrando também. E hoje eu sou um pequeno caleidoscópio em relação a ti: muitos pequenos fragmentos quebrados. Isso não é ruim, não me faz infeliz. Mas exigiu que eu tomasse uma outra postura em relação a ti: continuo te adorando, continuo gostando de ti, agora em milhões de pequenas partes nunca recompostas. Acho que tu não quer isso, acho que tu deseja alguém que seja uma totalidade pura. Eu não sou isso.

É provável que à noite, durante meu sono, eu estivesse tentando organizar meus sentimentos pra poder te fazer entender. Suei pra conseguir! Mas de fato sinto medo que meu corpo esteja arruinado, quebrado, craquelado. Ao contrário dos meus sentimentos, eu não quero um corpo maculado. Não é justo comigo. Eu não escolhi esses pequenos monstros nas minhas veias: foram eles que me escolheram. Foram eles que me procuraram, que me caçaram. Eu estava vulnerável, me fizeram vulnerável e me pegaram. Eu passei o dia inteiro de hoje sentindo medo de ficar sozinho, de ser deixado. Esse é o máximo da totalidade pura que tu pode ter de mim: meu medo.