Serpentes e toupeiras

Ficamos assim, esperando que um ou o outro se toque, se olhe no olho. Contabilizamos os beijos em tempos de recessão: é necessário poupá-los. Do que serve uma poupança de beijos nunca dados? Se antes, num momento não tão longe deste que estamos agora, nos acomodávamos um na barriga do outro e nos sentíamos em casa, dispostos a contar segredos como se fôssemos amigos, hoje é burocrático, processual, protocolar. Reuniões de pouca pauta e muito falatório, questões de ordem. Muitas diretrizes para regular algo que não existe. Dou o tempo que não tenho, a energia que deveria ser usada para coisas mais úteis, queimo o pouco potássio dos meus neurônios para... menos de um salário mínimo contabilizado em beijos, exatamente. Se tento debochar da minha situação, ridicularizar a exploração a que voluntariamente me sirvo, a censura não tarda: não se pode rir disso, é preciso levar a sério a mesquinharia da máquina, da engrenagem, do sistema. É claro que há alguém mais bonito, mais competente, mais dócil. Uma das crenças que me faz dormir à noite é que, ainda bem, cada um sabe o pedaço de inferno que traz consigo. Ou a sombra que se projeta para fora, produto de um vácuo. Buracos, vacúolos do nada: como serpentes ou como toupeiras, entramos e saímos desses túneis que cavoucamos (eu em ti e tu em mim).