aos dezessete dias do mês de abril, numa noite de quase outono ainda verão, sequei o rosto em frente ao espelho ao sair do banho. é claro, eu já estava na segunda metade da vida. sequei o cabelo e olhei novamente para o espelho. é claro, décadas haviam se passado. aquilo que um dia fora o amanhã estava incrustado em mim, enrugando minha testa e empapuçando meus olhos. o amanhã estava chegando, pousando não como uma máscara, mas como minha própria face. aquilo que um dia fora o amanhã já me estava todo em manchas e barba branca aos dezessete dias de abril. e eis que o amanhã um dia vira ontem. o ontem estourava, derramava, acumulando-se como um obeso. é claro, a morte estava próxima. e que vida se havia passado por mim? o ontem gorducho se avolumava até os cantos da sala e da cozinha. mas não era saliente, esse ontem: sabia que haveria um dia de ser esquecido, de modo discreto, tal como chegara silenciosamente em mim meu amanhã aos dezessete dias do mês de abril. no amanhã de hoje as pessoas vão esquecer de contar histórias sobre mim, vão esquecer de lembrar de mim e do meu nome, do meu rosto. e aí meu próprio ontem, que engorda hoje minha vida, terá se evaporado como gota de água em panela quente de ferro. me diziam "um dia tu vai perceber que a vida passou..." "um dia as pequenas coisas serão mais relevantes que as grandiosas..." "um dia a gente cansa de tentar mudar os outros..." "um dia um ano passará rápido demais"; pois foi aos dezessete dias do mês de abril. me havia chegado num só dia todos os dias que outrora me avisaram que chegariam. e chegaram todos no meu rosto; cansado; torpe; caolho; flácido nas bochechas; inchado nas olheiras e no papo. de que rosto fez-se meu amanhã dos tempos de criança... ah, se eu criança soubesse... é claro, ainda era eu. no espelho ainda reconhecia no meu rosto alguns traços familiares, comuns, de cristalizada memória cotidiana, que me permitiam encontrar rastros do ontem do ontem do ontem ... do meu ontem. meu ontem tinha vários rostos. se eu seguisse cada filete do cristal da memória cotidiana eu veria meu rosto rejuvenescendo até a primeira divisão celular que me fez. hoje eu era o amanhã da minha primeira célula; torta; desproporcional; tumultuada; agitando-se no útero de minha mãe; inquieta com a recusa de minha mãe. aos dezessete dias do mês de abril finalmente lacrou-se em mim aquilo que um dia fora meu amanhã.