uma porta aberta do roupeiro, escancarada, me atira para dentro de redemoinho de bagunça, coloca em toda a superfície algo desorganizado, desigual e heterogêneo que treme a imagem que tenho do quarto. não me ocorre pensar em arrumar as camisetas, meias e casacos; quando o faço, extraio sangue da carne entre as unhas de tanto por em ordem. mortifico-me pela bola de pó que se acumula no canto do quarto, ou da sala, mas junto as pequenas bolas com as mãos sem cogitar varrer o chão, sem cogitar passar pano úmido; quando o faço, arranco partes do assoalho que se descolam do cimento graças ao excesso de desinfetante. um silêncio enganoso equilibra-se no ar frio do quarto: um cão latindo ao fundo, um carro acelerando várias quadras daqui, surpreendentemente a vizinha hoje não assiste tv no quarto ao lado; um engodo de silêncio que mais ou menos paira junto com o ar gelado. quais crueldades estão sendo maquinadas enquanto me aconchego no suposto silêncio do meu quarto? quais maldades nos aguardam para amanhã, "em mais um dia de tempo estável e temperatura amena"? ouço alguns passos andares acima, que cessam em seguida. uma porta bate. todos dormem, mas eu não. quero escavar os barulhos e quero atribuir histórias a eles. quero alocá-los no mundo, embutir sentidos nesses ruídos. quais maledicências estão sendo ditas sobre mim? qual mantra de incompetência me circunda e me eleva do chão, como névoa? o tecido da minha pele se esgarça aos poucos, instaurando vincos nas superfícies planas do meu rosto, esticando a pele grossa das mãos cuja textura se aproxima da dos papéis a4, os lábios craquelam e racham prendendo palavras que não podem sair, não agora. a boca sangra. uma desordem aparente no roupeiro, confusão de cores e tamanhos, com a porta toda aberta, escancarada. calças muito apertadas, mal costuradas, surradas do suor. camisas amarrotadas, desbotadas. não sei dizer quantos botões faltam nos suéter e nos pulôver - na verdade nem sei escrever essas palavras e ignoro a diferença entre as duas peças. ouço alguém tossindo no andar de cima: princípio de pneumonia, mulher solteira de quarenta anos, filha única de viúva, antibióticos não funcionam. sigo acordado tentando criar narrativas para aquilo que não tem ou que não merece história. crio-as mesmo assim, porque sem besuntar de memórias, de passados e de razões para existir qualquer coisa que seja eu não consigo viver neste mundo, um mundo que de mim confisca as memórias, os passados e as razões para eu existir. invisto a bola de pó de reivindicações políticas e o roupeiro esculhambado de crises existenciais. ponho significações no silêncio como etiquetas. vou desfigurando essa solidão dando nomes, profissão e signo astrológico para cada taco do piso de parquê da minha sala.