Cartas a uma Jovem Bicha - A bicha em crise

"... Isso é ridículo. Queres inspirar desejos ardentes. Quando todos te odiarem, chamem a atenção deles, porque algo haverá de errado. E quando todos te amarem, por favor, te interne, porque será patético. Te levantas para abrir mais a janela; têm feito uns dias infernais ultimamente, chuva que é bom, nem pensar... Mas tem umas nuvens para aquele lado, é isso que tu vês? Teus outros amigos? É, tu sabes porque eu te pergunto. É só a mim que tu recorres quando estás desse jeito, não é mesmo? Teus outros amigos não sabes se perdeste pelo caminho, se nunca os conheceste, ou se ainda estão por vir. Eu também não sei onde eles estão.
Quando te olhas no espelho, vês um grande ponto de interrogação com cabelos desgranhados, barba por fazer, nariz cravejado de espinhas e uns olhos tristes, fundos, que não olham para fora, nem para dentro, que olham para algum lugar que definitivamente não sabes onde fica... E teus olhos ficam olhando para esse lugar indescritível, indiscernível, inexistente por horas. Não sabes o que és, sinceramente. Poeira cósmica, talvez. Teve um cientista que disse uma vez que todo o ser humano um dia foi uma estrela, que todos nós somos poeira de Supernovas. Sabe lá, não é?
E de repente tu percebes que é bonito... que tá começando a chover.... e chove forte, sim? Tu fechas a janela, espera ali por um instante. Achas linda a chuva. Essa água fecunda, divina, que cai do céu como um presente dos deuses para nós. Essa água deve ser milagrosa, tu pensas. Acreditas que a água da chuva seja capaz de fazer botar no espírito de cada pessoa um sentimento de tolerância, de admiração, achas que ela é capaz de levar embora o peso inconsciente que carregamos. A chuva é solitária... Por muitas vezes te deprimiste andando sozinho na chuva, de madrugada, as ruas vazias, e tu estavas debaixo de muita água, todo molhado, perguntando para os deuses por que estavas lá, chorando junto com o céu, indo de volta para casa. Doía, não é mesmo? Mas também achas que a chuva é romântica... Achas que deve ser legal namorar escutando a água bater na janela, escorrer pela calha, ver o céu cinzento, sentir o vento e o cheiro que essas tempestades trazem. Os relâmpagos, os trovões, o medo daquele barulho bravo; um abraço de aconchego, um beijo de segurança. Transar bem gostoso sabendo que o mundo lá fora está todo molhado, e dormir abraçado, “de conchinha”, embaixo dos cobertores, sonhando com um dia de sol na praia..."