Inventário

Ele queria que houvesse mais que pudesse dizer, mais que pudesse escrever. Mas quando teve a oportunidade, ou as oportunidades, ele só disse de um jeito apagado, bem baixo, num tom de voz lento e quase inaudível, que tudo o que sentia era uma pequena alegria de poder contar com aqueles sentimentos todos guardados embaixo do imenso guarda-chuva que é seu espírito.

Um pequeno montante de alegria para um pequeno orçamento de futuro, uma pequena quantidade de alegria para pouco corpo. Não era uma dose cavalar, nem uma dose única e concentrada. Era um pequeno projeto, um singelo projeto para quase nada de convívio.

Ele queria que fosse mais e maior, mais profundo e mais denso, mais incontrolável e mais descontrolado. Não era, todavia. Era simples e sem rebuscados, era fácil e leve. Quis devolver tudo o que havia juntado em todos aqueles instantes, passar um pano úmido sobre as prateleiras, juntar o pó acumulado e devolvê-lo num envelope fechado com sua saliva. O pó e uma pouca gota de saliva era tudo o que havia pra devolver. Nem o tempo, nem a energia, nem os planos, nem a confiança, nem a dor que sentia poderiam ser reembolsados. Eles eram seus e somente seus.

Discretamente disse adeus àquele mundo particular que ambos construíram. Pequeno e singelo mundo particular, mas que por mais humilde que fosse teria que ser divido na partilha dos bens. Pois era um bem comum aos dois. Para evitar ranger de dentes e decepções, abriu mão de sua parte, que não era muita: duas trepadas inesquecíveis, três porres homéricos, um amigo valioso e duas receitas deliciosas. Assinou o papel onde constavam as cláusulas da divisão.

Em pequenos movimentos foi se distanciando, quase tão imperceptível quanto quando disse que acabara tudo, isso porque achava mais elegante sair como chegara. E chegara em silêncio, se postou ali e ali fez seu universo. Numa pequena área do coração alheio semeou planos, e à medida que deram frutos colheu-os e saboreou-os. Não edificou casa para morar, nem rede para se deitar. Só ficou ali para ver os brotos crescerem e darem novos brotos, certificando-se da sua capacidade de plantar e da capacidade do outro de fertilizar.

Com passos curtos se foi indo embora, sem olhar pra trás, mas sorrindo e acariciando em si as coisas belas, as coisas doces que ficaram sob sua tutela. Adotara a nobreza e a honestidade de ser pai cauteloso, pai zeloso, pai atento. Levava consigo seus filhos, não todos, mas apenas aqueles que quiseram acompanhá-lo. Foram com ele a esperança de surpreender-se com ele próprio e a dúvida nas previsões – ou seriam profecias? – mais pessimistas que o garantiam castigos terríveis por não ser capaz de amar. Foi com ele também a culpa de ter plantado sementes, de tê-las cultivado e de ter colhido seus frutos, culpa de deixar as árvores bem crescidas, de folhas verdes e galhos robustos, com seiva fértil, culpa de retirar-se como jardineiro mesquinho.