Receita de pão

Eu peguei aquelas pessoas e comecei a misturá-las todas num recipiente pequeno para que nenhuma delas fugisse.

Primeiro comecei com uma colher de pau, girando das bordas pro centro, convergindo das suas diferenças para tudo aquilo que elas tinham em comum. Adiantou até os primeiros cinco minutos.

Depois tive que usar uma escumadeira: eu queria uma massa bem homogênea, mas sabia que as idiossincrasias de cada um não dissolveriam por mais que eu batesse, agitasse, passasse no liquidificador. Seria uma massa embolotada, haveria bolhas na massa, que lhe dariam o sabor característico. A escumadeira, portanto, eu usei para arear, para dar leveza, para dar um toque de veludo àquela receita; se eu perturbasse todos eles e não os desse a condição de sentirem-se livres para me deixar, eu estaria criando monstros que contra mim levantariam mais tarde.

Alcancei o ponto perfeito quando a cor me causou náuseas e quando o cheiro ficou fétido. É exatamente este o momento ideal para parar de sovar, bater e misturar e então, acrescentando perguntas para fermentar dúvidas, jogar um pano de prato por cima do recipiente e deixar a massa crescer. E já aviso que cresce bastante! Ela se multiplica mais do que podemos imaginar, a tal ponto que o recipiente não é suficiente para as proporções da massa: ela escapa pelas beiradas. As pessoas tornam-se outras, criam coragem, ousam inventar frases e formulam milhares de respostas para as perguntas postas na fase anterior com esta nova gramática que constroem para si. A parte mais bonita da receita é essa, é ver a massa tomando vida e desequilibrando-se, perdendo-se do seu caminho para asfaltar outras estradas.

Há quem goste de comê-la crua. Se for esta sua escolha, faça agora!

Se preferir, ponha no forno e asse até quando estiver bem dourada por fora. Fure com um palito de dente ou um fósforo e se sair molhado de sangue é porque está na hora de servir. O sangue é sinal de vida, é sinal de um corpo vivo, um corpo-outro, e as pessoas da receita estarão vivas para serem cortadas em fatias e servidas em pratos fundos. Passe manteiga por cima delas ainda quentes, ou jogue uma calda de morango.

Segredo desta receita: o fermento, o tempo, as dúvidas.