Cartas a uma jovem bicha - por uma vida imensa

Venha, sente aqui do meu lado e contemple daqui todos meus inimigos.
"Quem ama mata mais com bala que com flecha", e no furo se fez um rastro infinito que me percorre, que me atravessa. Há momentos em que me arrependo, mas imediatamente me ocupo em ler notícias, ou escutar músicas, ou conversar com amigos. Nunca fui dado à simpatias tranqüilas e sempre preferi a atrocidade dos sentimentos mais ferozes. Sentado em espaços de silêncio absoluto, nunca fechei meus olhos: mantive-os atentos à espera do meu predador. Bebi a última gota do vinho, do hi-fi, do gozo; gastei o último centavo da minha conta, da conta do meu pai, do limite de todos os cartões de crédito que tive; vomitei o último grão de arroz e o último pedaço de alho; lavei com escova e desinfetante o box do meu banheiro até o último mofo. Em raros momentos reservei com cautela os limites do meu corpo. Até o medo, até o nojo, até o desprezo e até o terror eu senti com força e consumi com energia. Não fui santo, nem bom amigo. Não fui o melhor aluno, nem escrevi as melhores redações. Não falei com graça, não falei coisas interessantes, não beijei bem e meu pau foi apenas médio. Nasci gordo, emagraci, depois engordei, e nasci careca, depois me enchi de cabelo para em seguida perdê-lo todo. Com meus dentes a história foi a mesma. Nunca fui objeto de desejo, de admiração ou de paixões ardentes. Nunca fui o personagem de algum sonho, nunca fui ator em fantasias sexuais de terceiros, nunca fui o responsável por sessões contínuas de masturbação grupal. Fui nativo, fui estrangeiro e fui nômade. Fiquei dormindo em casa, sobretudo nas manhãs de inverno, quando eu deveria ter ido trabalhar ou assistir à aula. Quando solicitado sobre minhas ausências, dizia de doenças, de compromissos, de viagens. Menti, omiti e inventei. Nas situações de traição, eu ri da lágrima alheia. Guardei os melhores perfumes comigo, as melhores músicas, os melhores carinhos, de modo que ao sentir-me só - e foram tantas vezes! - sempre recorri a eles. Nunca me adiantaram muito, mas nunca se negaram a me consolar. Encostei minha cabeça na parede e chorei muito por saudade.