Os homens que passam por mim

Já escrevi por aí que quando ando pela rua eu gosto de olhar o rosto das pessoas para inventar uma estória para elas em minha mente. Isso me ocupa muito tempo, me deixa absorto, compromissado com o que penso, de modo que me perco nas sinaleiras e dobro nas ruas erradas. Pareço um bêbado ou um turista desorientado, mas o prazer de atribuir estórias – só minhas – às pessoas que por mim passam é sem igual.

Hoje eu estava sentado na praça de alimentação de um shopping da cidade. Final de semana, muitas pessoas pra eu inventar estórias e nelas colar, tal qual etiqueta, minhas próprias narrativas. Mas dei-me por conta que separo bastante bem a qualidade e o percurso dessas narrativas de acordo com o gênero dos transeuntes. Para mulheres, quase sempre reservo cenas de tafetá, capitonês e organzas. Para homens... Para os homens eu não invento estórias. Para os homens eu reservo a minha própria vida, na qual eu os insiro sem modéstia.

Os homens que passam por mim – eles não percebem, mas é isso que acontece – são subtraídos de alguma fagulha que deles eu roubo. Vou andando com olhar baixo pela rua, levanto lentamente meus olhos até conectar com os rostos ou com os olhos destes outros homens. E quando eles passam, tão perto que nossas mangas roçam, eu roubo o cheiro do pós-barba, do desodorante recém colocado na axila ainda no vestiário da academia, roubo o cheiro do cigarro ou do cimento ou da tinta que mancha suas roupas. Como um bricoleur, pego retalhos de um homem aqui, de outro mais adiante, de outros tantos que já passaram por mim, e vou montando um grande espantalho – ou um Frankenstein – de um uomo que me habita, que me faz companhia. De alguns homens que passam por mim eu não furto cheiros, mas prospecto características físicas para dar cara ao meu uomo pessoal: numa tecnologia recorta-cola, tiro uma cicatriz na bochecha esquerda de um, uma barba ruiva de outro, uma mancha avermelhada no pescoço de um qualquer e vou montando um rosto caleidoscópico para meu uomo. Nesses homens observo os movimentos do maxilar ao mastigar a comida e vou tocando seu ombro, braço, antebraço e mão até me deter na mancha branca da unha do seu dedo indicador, dedo robusto de homem, vizinho de uma aliança escrota. Copio e colo o cabelo negro que balança no vento, os pêlos fartos, grisalhos e grossos que saem pela gola da camiseta, o olhar diagonal – oblíquo, de cigano dissimulado – e cheio de luz verde, o pênis avantajado que desliza pelo lado esquerdo da calça, a cueca branca, a bunda dura; copio tudo e colo tudo no meu uomo próprio. Quando chega a noite eu brinco com ele, movimentando-o no meu passado e no meu futuro, contando para ele a estória da minha vida, como ela foi e como ela será quando nós nos conhecermos, narro o primeiro momento em que nos vimos, a roupa que ele vestia e o perfume que ele usava... E todas essas qualificações generosas, cheias de detalhes bastante realistas, eu colho destes homens que passam por mim.

Será assustador o dia em que meu espantalho, meu Frankenstein, meu uomo me surgir! Porque por mais que eu já tenha narrado de trás pra frente milhares de vezes esse instante, me parece fantasmagórico que ele de fato exista.