Ética do dia de hoje

Treme minha mão, treme. Tremem essas coisas que eu tenho pra escrever, e elas transbordam e caem, se espalham, a garrafa cai e eu bebo do chão. Porque nada pode ser desperdiçado. Lá longe tem uma coisa boa, uma coisa linda, que eu fico olhando e me perfumando se é pra isso mesmo que eu estou aqui, mas eu daria tudo para estar na pista de dança, no som alto, junto do cheiro que mistura perfume e cigarro – eu adoro o cheiro de cigarro, eu gosto do cheiro que fica no tecido. Eu gosto – sim, eu gosto – do non-sense, do vácuo, do momento. Eu fui até lá e vi tudo, me virei e saí de forma elegante. Não tinha como eu me acampar. E não acampei. Fiquei sobrevoando, jogando sementes. Não me interessa saber se haverá frutos, mas só o silêncio e os olhos que deslizam, que não me encaram, ou que me querem, que se recolhem. É tudo, e é isso também: uma vontade imensa de deitar ali, de estar nessa cama que eu recém estendi, de me enrolar nos cobertores e habitar o quadrículo todo, é um pequeno quadrículo, mas de esquentar a coisa toda com meu corpo que não é nem vulcão nem geleira, mas só isso que deita. E que deseja também, mas essa semana eu não desejei – que mentira, desejei, desejei profundamente, aquelas bermudas de futebol, aqueles panos, aquelas camisetas suadas, aqueles tênis de futsal. Tu é muito lindo. Duvido que haja alguém mais apto a te dizer isso que eu. Porque tu percebeste, tu sabes que eu te olho, e tu até me deste tchau. E eu respondi: “OI!”. Não dou tchau a quem eu quero cooptar. Não é feio, nem triste: é morno. A garrafinha de long neck está congelada por fora. E eu ainda nem bebi. E é isso que é legal, ir pra um outro lugar onde o gelo nem se forma e o banheiro é movimentado, ah o banheiro, cada entrada é uma aventura. O hálito que sai da minha boca, esse ar morno com um cheiro estranho, esse hálito seduz. Mas hoje eu não quero muito mais que isso: uma cama estendida, uma televisão, dois travesseiros e uma vontade louca de mergulhar num futuro tão bonito. Tão Tranquilo. Tão Calmo. Tão Eu. Porque eu sou calmo, eu sou muito discreto: não transpareço o monstro que sou. Sou discreto. Um beijo, uma risada: eu vou ficar em casa hoje. Desculpe. Nada mais tem brilho, nada mais tem aparência: tudo se mostra como é. E que crueza é essa, que obscenidade. Obsceno, obsceno o teu eu! Eu deslizo pra esquerda e vou contornando, superando. Minha barba está longa, mas pretendo ir até suas raias. Vamos? Quem vai comigo? Eu queria estar lá, mas já esgacei a calça de moleton, o casaco de lã, a pantufa. Mentira, não uso pantufa: meus pés são gelados desse jeito mesmo porque fico sempre descalço. Eu fico sempre descalço! No verão e no inverno! Porque meus pés são muito sinceros, são o que são, e habitam minha casa – minha casa não é minha, minha casa é dos meus pés (tenho Netuno na casa 4): entra aqui e vê que coisa linda, que coisa morna, que coisa cheirosa. Sorrio e pisco os olhos. Há algo de profundamente novo nascendo em mim, há algo de muito inesperado que eu afogo, que eu encubro e disfarço. E volto pro mesmo medo de sempre. É tu que vai me tirar disso, é tu que vai ver isso e que vai me dizer, que vai me avisar. E eu vou escutar, porque eu escuto a tua voz. Eu vou escutar e vou deixar verter: me ajuda? Eu também te ajudo! Porque eu também vejo isso tudo em ti, e mais e mais, e eu vejo uma sintonia, e eu vejo uma propulsão, eu vejo uma vida, eu vejo uma admiração, um respeito, um carinho que vão muito além do “teu corpo é só meu” ou “tu me esconde coisas”. Eu não escondo nada de ti. E me orgulho de me mostrar assim do jeito que te apareço, do jeito que me mostro – e se me mostro é porque quero ser visto desta ou daquela forma. E tu me viu, que bonito. Que bonito. Tu é muito lindo. E contigo eu sou feliz porque amanhã eu vou poder acordar e trazer um café, um bolo que eu fiz, um pão que eu fiz, uma flor que eu colhi e um beijo que eu guardei pra ti. Nem sempre foi pra ti – em outros momentos guardei pros outros também. Mas agora são teus e eu tenho tanto orgulho de ti aí dentro desse corpo lânguido que se deita na minha cama. Agora chega: vou desligar a luz e dormir com ele. E nesse resto de consciência antes de dormir, eu encaixo no seu corpo (e ele no meu), e a gente pensa em milhares de outros corpos que não são nem eu nem ele, desejamos milhares de outras palavras que não foram aquelas que a gente se disse, mas somente essa cama é nosso denominador comum. Queremos outras coisas, outros corpos, outros beijos e eventualmente conseguimos. A gente vai lá longe e volta; nos Anéis de Saturno e volta. Porque é bom estar aqui – mas é melhor viajar até os Anéis amando alguém que fica.