Moral do dia de hoje

Nunca vi vontade de ficar deprimido que desse mais errado que a minha nos últimos dias. Eu tentei de tudo pra me achar um corrupto, mas não houve ficção que me convencesse. Comecei caindo na sarjeta com um estranho. Fiquei ali com ele um tempo, vendo o dia nascer. Um frio delicioso, e não tínhamos roupas suficientes. A noite que passou fora quente. Convidei o rapaz para dormir comigo, ele não quis. Começou a ter uma viagem interna bem ruim, provavelmente devido ao abuso de drogas ilícitas, e quis sair correndo. Eu me ofereci, então, para levá-lo até a parada de ônibus. Ele entrou onde devia, e eu peguei um outro ônibus que nunca tinha visto antes, mesmo sabendo que eu não tinha dinheiro para pagar a passagem. Apostei que seria jogado para fora do ônibus. Porém, o motorista disse que eu poderia ficar ali na frente desde que não tirasse o lugar de nenhuma pessoa que precisasse. Daí eu fui com esse ônibus até uma zona da cidade que eu não conhecia, que eu não sabia nem perto do que ficava. Casas, ruas e pessoas totalmente estranhas. Pensei que talvez se eu ficasse vagando por lá meio moribundo, um pouco com cara de mau (do que eu julgava ser mau), talvez aí as pessoas me achariam criminoso. Mas uma senhora teve pena de mim, e eu ia passando pela porta da sua casa simples, e ela me chamou. Eu voltei, exagerando na cara de mau, e ela me perguntou meu nome. Eu respondi, meio que rosnando. Ela disse o nome dela e me convidou para um café. O cheiro chegava até ali a porta, onde nós dois estávamos parados com os braços cruzados bem rente ao corpo porque fazia muito frio. Eu não pude resistir àquele cheiro. Desfiz a cara teatral e entrei na casa humilde, onde tomei o melhor café do mundo. Eu agradeci àquela senhora com um abraço bem quente, um abraço que só as manhãs de inverno guardam pra gente. E ela me disse que conhecia um vizinho que estava indo pro centro da cidade por aquela hora e me perguntou se eu não queria carona. Eu respondi que sim. Ela me levou até a segunda casa humilde logo depois da sua, e vi um carro bem antigo estacionado dentro de uma garagem que era apenas um puxadinho de madeira. A porta do carro estava aberta e prestes a entrar nele estava o motorista. Que rapaz lindo! Lindo daqueles de doer de tão lindo, de deixar a gente nervoso, meio anestesiado, com vergonha de falar muito alto senão era capaz de fazer quebrar aquele rosto talhado a facão, toscamente, de barba meio ruiva e meio negra, de dentes fortes, de cílios longilíneos e curvos, de dedos grossos. Ele aceitou me dar carona. E eu aceitei o desafio de me fazer odiado também por ele: vi reluzindo a aliança dourada em uma de suas mãos e armei uma estratégia para seduzi-lo durante o longo percurso que partia daquele nada imemorial onde eu estava até o centro da cidade. Durante o percurso eu abusaria dos meus olhares e dos meus toques no corpo daquele belo homem casado para, então, provocar uma situação de violência, para ser espancado por ele, agredido por ele, xingado por ele. Entramos no carro, trocamos algumas palavras (a voz daquele homem estremecia as partes ocas do meu corpo, que eram várias), e esperei a primeira sinaleira. Pus a mão na sua coxa direita. Ele não se mexeu, e o sinal continuava vermelho. Apertei sua coxa direita. Ele continuava quieto, e o sinal continuava vermelho. Não era possível que ele não faria nada! Abusei: fui deslizando minha mão em direção à sua barriga. O sinal abriu, ele acelerou o carro, eu tirei minha mão por um instante e ele me disse que eu poderia continuar com ela ali onde estava. Eu pedi pra que ele repetisse aquilo, que eu não tinha entendido. Ele me disse que já me conhecia da televisão, que já tinha me ouvido falar em um programa de rádio, que eu era muito mais bonito ao vivo e que eu podia continuar com a mão na sua coxa. Eu perguntei da aliança: era a aliança do pai, já morto, que deu para ele, seu primogênito, para que lembrasse de cuidar da mãe até que ela morresse. Então não havia casamento? Não. E na tentativa de ser odiado, eu acertei minha seta no alvo que eu não queria: o de ser feliz.