a minha necessidade de escrever nunca foi tão urgente, mas justamente por isso recuso a ideia de abrir a tela em branco e rasgar as linhas, de empurrar o cursor com as palavras até o fim da margem, de responsabilizar-me pelo sentido geral do que será escrito. preciso escrever, preciso, e fujo da autoria. a fuga, contudo, não me auxilia em nada a lidar com o amplo espectro de fantasias que habitam meu dia a dia, meu cotidiano. eu estava deitado agora há pouco, já com as luzes do apartamento todas apagadas, deitado de bruços, querendo dormir. impossível, pois cogitei que se escrevesse mais sobre cada grão de pensamento atordoante que me ocorre - escrita mesclada com exercícios de drama, de romance, de ficção -, se eu escrevesse mais sobre cada bandeirola fincada a força no trajeto, eu talvez seria mais calmo, mais sereno, mais consistente. são pequenas as coisas, as coisinhas sobre as quais eu poderia escrever: a) o reincidente olhar de relance para minha bunda refletida no espelho, orgulhando-me de tê-la empinado pela prática regular de exercícios nos últimos meses; b) o pavor, a aflição e o fascínio pelo vizinho do prédio ao lado, que me impedem de usar mais minha sacada e certas beiradas do meu escritório próximas à janela, temendo e desejando ser visto por ele; c) o medo da emergência de um período de ditadura no país, regido pela violência e intolerância de toda ordem, no qual seremos todos governados por quem odeia e odiaremos uns aos outros como forma paradigmática de relação; d) meu cabelo, sempre meu cabelo, comprido e cacheado, ondulado e anelado, já grisalho em estado avançado para minha idade, cujos fios caem às dezenas por dia acumulando-se no ralo do chuveiro e nos cantos dos cômodos; e) memórias pontuais, porém repetidas, de desilusão e tristeza pelos ex-amigos, ex-companheiros, que de súbito escolheram não mais falar comigo, e que eu com isso concordei pois por isso desejava, roendo as pontas das desde sempre frágeis cordas que me atam a este mundo; f) dinheiro, sua existência e a perspectiva de sua falta, produzindo o receio de dívida próxima e alimentando uma fantasia (também permanentemente atualizada) de empobrecer até o fim dos meus dias e morrer sem um tostão, sem um amigo, sem aquilo que é tão fundamental para os fracos: reconhecimento; g) a dúvida sobre a profissão de docente no ensino superior, se é esse mesmo o ofício ao qual devo me agarrar ou do qual devo me desgarrar - o que se junta ao medo de empobrecer; h) flashes de uma experiência sexual e afetiva com um homem casado, cujos primeiro e último encontros foram para mim vergonhosos, de quem nunca mais obtive nenhuma palavra, homem sobre o qual fantasio que sente pena de mim e arrependimento por ter praticado sexo comigo, lembranças e suposições que só fazem sentido se articuladas a um forro denso de neurose depreciativa que é indubitavelmente atravessada pela experiência singular que tenho do meu próprio corpo - daí, talvez, a razão de olhar reincidentemente para minha bunda refletida no espelho e orgulhar-me por tê-la empinado, ao mesmo tempo apavorar-me com o olhar do vizinho, temer a ascensão de um ditador (que no mais já existe em mim), supor minha pobreza (com que já vivo), admirar meu cabelo crespo e grisalho, magoar-me com quem um dia me magoou... colocar essas coisinhas em palavras e frases é responsabilizar-me pelo significado que vão adquirir. é ter de medir a extensão da linha, equilibrar as vírgulas, eventualmente trocar um verbo por outro e achar aquele substantivo preciso. é fazer da frase uma flecha, ou míssil. é ter de reler o que me atordoa e o que me desfaz, o que me transforma em borrão, é ter de realinhar e reagrupar em novas unidades de sentido tudo isso que me dá sentido. parar de escrever só quando sinto fome, aquela fome que dói. eu não sei pesar a frase, medi-la, não sei encontrar a proporção da descrição nem o equilíbrio da precisão em relação à sugestão. tenho que me haver com a escrita, com aquilo que escrevo, responsabilizar-me pelo sentido. escrever é responsabilizar-se. é assustador porém necessário, e eu não consigo viver sem esse terror mesmo que me falte técnica, mesmo que me falte domínio da língua, mesmo que me falte maturidade literária. estou comprometido com minhas próprias narrativas.