cheguei ao ponto de ter um fio de cílio inflamado. um ponto dolorido no canto do meu olho esquerdo, que pulsa e incha, avermelhado. um cantinho de mim, um ponto mais ou menos profundo, um resto de olho, uma esquina pequena das minhas curvas: inflamada. aqui estou avançando a madrugada ao som do ar-condicionado da vizinha, de uma ave desregulada que canta e pia, de um cão latindo muito ao fundo, de um zunido surpreendente de silêncio que sobrepõe as demais vibrações. um silêncio ao redor, em volta do meu cílio inflamado. atravessei corredores hoje com um passo firme e um rebolado cativante, vestido em calça e camisa justas: pisando um dois, um dois, um dois, bem firme, para o solado do sapato estremecer quem me via (e ouvia) passando. numa dessas travessias, me perguntei o que eu estava fazendo lá. não por estar perdido, não por ter momentaneamente esquecido o que eu tinha para fazer. não, a pergunta era bastante consciente, consciente do trajeto do corredor e do fio de cílio, consciente de mim naquela caminhada de avestruz: "o que eu estou fazendo aqui?". percorri o corredor sem nenhuma resposta. o percurso foi silencioso, apensar de meus passos firmes. mesmo assim, aqui estou avançando a madrugada com a mesma pergunta. tenho ainda dois dias pela frente, mais tudo o que poderá advir de suas horas, de suas maldades. devo corrigir-me inteiramente para refazer a pergunta; do contrário o cílio permanecerá inflamado e o corredor, silencioso.