hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

[a trilha sonora deste parágrafo é "everybody's gotta learn sometimes", cantada por Beck. Ah, para ler "hoje meu coração disparou" é necessário ter assistido a esse filme também. do contrário, nada acontecerá nessas almas moles de vocês.]

leio "copo vazio" com um lápis. sempre leio romances com um lápis em punho porque tenho a mania de comentar, corrigir, encontrar pequenos erros de digitação, sublinhar o que me impressiona. eu estudo a narrativa de ficção. vou atrás das referências, confiro as intertextualidades. monto a rede de histórias na história - não para entender melhor, mas para espalhar o que leio. esparramo a narrativa. escrevo na margem de vários parágrafos de "copo vazio": "eu todinho", "eu inteirinho", "puta merda"; faço emojis de coração ao lado de "ele se deitou de cueca" na página 29; assinalo asteriscos nas ruas por onde passei; comento na página 31 "gata, você é uma trouxa"; discordo da narradora, na página 43, quando fala em "abandono", pois não acredito que Pedro tenha abandonado Mirela, e escrevo "desinteresse", "desprezo", "condescendência", "despaixão" nas margens. converso com Mirela, pois me identifico. trouxa, ingênua. adoro Mirela. caiu no conto do flamenguista. Pedro é meu Nestor - com sutis diferenças. eu o conheci no minhocão, num dia estranhamente quente depois de uma sequência de dias frios. amanheceu aquele domingo de sol morninho, um domingo que aconteceu, assim mesmo, como se acontecimento fosse. eu vesti regata e bermuda displicentemente, fones de ouvido e celular, paramentado para caminhar. era metade da manhã. o minhocão é energizante. os grandes murais dos prédios carcomidos, com mensagens de emancipação e revolta e autoafirmação, as pessoas estranhas nas janelas e sacadas, as pessoas mais estranhas ainda usando o asfalto como se praia fosse (e é [não é, mas serve.], a praia santa cecílier). caminhei e li "eu sabia que você existia"; "no país da corrupção pixação é crime", "hoje não vou me ferir", e eu sorria. naquele domingo eu estava ali e em nenhum outro lugar. não estava radiante, eufórico. estava só aproveitando a bondade do domingo, que era um acontecimento. decidi me sentar nos bancos improvisados próximos à praça Roosevelt. e notei o rosto por trás da máscara (às que lerem isto anos no futuro, houve uma pandemia causada por um vírus entre 2019-2020-2021 e todas as pessoas do mundo precisaram usar máscaras como forma de prevenção [o que foi uma chance para quem era feia e uma dificuldade a mais pra quem era apenas normal mas tinha harmonia facial, como eu.]), cujos olhos me acompanhavam. Nestor estava sentado a poucos metros num platô de madeira. eu me deitei em algo que parecia uma espreguiçadeira, de tal forma que o rosto por trás da máscara estava no meu campo de visão. escolhi um podcast de política para ouvir no spotify. e cuidava daquele rosto por trás da máscara que, sem cansar, sustentava o olhar em minha direção. boné, bermuda jeans, chinelo de dedo, camiseta verde da osklen. nesse primeiro instante eu não tinha certeza de gostar daquele homem que me encarava. eu o achei jogado demais - mas o que é ser jogado? era eu quem vestia displicentemente regata e bermuda, seminu. e o rosto por trás da máscara ainda olhava. "a política externa de bolsonaro, pipipi-pópópó, a descrença nas instituições democráticas, patati-patatá", eu ouvia o podcast certo de ser alguém que, mais que sustentar um olhar, poderia sustentar também uma conversa. o rosto por trás da máscara se levantou e veio caminhando devagar até um espaço vazio próximo de onde eu estava deitado. sentou-se e arrumou a camiseta verde da osklen amarrotada. olhou pra frente, virou pra mim, o rosto por trás da máscara sustentou o olhar em mim. decidi retribuir, simulando aquelas brincadeiras de quem-piscar-primeiro-perde ou quem-rir-primeiro-perde. eu perdi porque eu ri primeiro. ele percebeu, mesmo que eu também estivesse usando máscara (só naquele momento me dei conta de que eu poderia ser uma boa ou má supresa pra ele quando eu tirasse minha máscara [e ele também pra mim.], então a tirei, um pouco envergonhado). "eu sou Nestor. o que cê tá ouvindo?". tirei um fone do ouvido, "desculpe, não te ouvi". "eu disse que sou Nestor. o que cê tá ouvindo aí?" "ah, uns podcasts sobre política. é sempre um horror." "é sempre um horror. eu deixei de ouvir. prefiro viver, fazer coisas boas. porque se esse cara continuar como presidente..." e foi então, vendo e ouvindo Nestor articular as primeiras palavras, que me fixei nos pelos pretos e brancos da barba se movendo por entre os elásticos que prendiam a máscara pelas orelhas. um tiozão de esquerda nove anos mais velho que eu. Nestor foi se espalhando, e eu fui dando entrada. de política trocamos de assunto pra cinema; de cinema pra literatura; e já era início de tarde, e eu o convidei pra conhecer uma cafeteria ali perto onde há café e também livros; nos demoramos na literatura; de literatura pra música; de música pra adolescência; e a tarde já virava noite, e do café passamos pro vinho; da adolescência pro primeiro beijo; do primeiro beijo pras saídas do armário - pra família, pros colegas de trabalho, pros novos amigos; de saídas do armário pros grandes medos. eram dez da noite. tínhamos passado doze horas conversando. o café estava fechando. pensei em trepar com ele na rua mesmo. mas ele, por outro lado, pareceu querer preservar alguma coisa de vitoriana daquele momento. pediu, apenas, que eu mandasse um oi no whatsapp e disse que responderia quando chegasse em casa, pois a bateria do celular tinha acabado. de pronto registrei o número nos contatos e corri pro aplicativo pra conferir a foto de perfil que ele escolhera. um pouco decepcionante. mesmo assim escrevi: "conforme o prometido, oi". como sempre, eu mantenho minhas promessas. eu aposto.

paramos nos grandes medos, e Nestor é isso pra mim até hoje.