hoje meu coração disparou PARTE II

[a trilha sonora deste parágrafo é "socorro", cantada pelo Arnaldo Antunes.]

"bora lá, não tem sofrência boa sem um tarô", disse a amiga que me acolheu em seu apartamento dias depois do meu meltdown emocional por Nestor. ela tem razão. a mística das cartas, da astrologia, tem tudo a ver com uma dor de cotovelo. "põe as cartas pra esta macabéa", eu ratifiquei. eu quase havia precisado ir a um atendimento psiquiátrico de emergência. queriam me dar lorazepam, diazepam, um mata-leão qualquer pra me fazer parar de chorar e calar a boca. na sexta-feira anterior, depois de uma semana inteira de mensagens territorialistas, ambíguas, e sem nenhuma intenção de me ter no colo, Nestor mandou um meme. não, não era um meme; era um post de um perfil aleatório do twitter que brincava com a letra de "vambora", da A. Calcanhotto. só poderia ser um deboche, uma ironia. eu digitei "é uma piada?", ao que ele respondeu "não faz a Maysa", que eu supus remeter à cantora de "meu mundo caiu". ainda pensa que sou um romântico brega, esse calhorda. mandei logo um áudio de um minuto e vinte e três segundos. pápápá, somos dois adultos, bibibi, não é culpa de ninguém, tananã, eu vou viver minha vida, e isso e aquilo, gosto demais de ti. era por volta das três e meia da tarde. nunca mais recebi notícias de Nestor.

"então, amigo, vamos ver o que as cartas dizem", "elas mentem sempre", "hoje não vão mentir". ela embaralhou, pediu pra eu cortar o monte em três. eu cortei. ela reuniu novamente os montes, embaralhou. abriu as cartas em um semicírculo sobre a mesa de madeira. ela tinha colocado um incenso fedorento pra queimar, de cravo, meus olhos ardiam. "escolhe cinco." peguei três da ponta esquerda, uma do meio e uma da ponta direita da fileira. o assento da cadeira praticamente não tinha mais estofo, minha bunda doía contra a madeira, afundada. ela colocou quatro cartas em cruz e uma do lado superior direito. "esta separada aqui é a que manda no jogo."

1a carta:

A Diva: uma mulher forte, poderosa, vai entrar na tua vida. ela é muito magnética. ela brilha. certifique-se de que ela te enxergue, te perceba, te aceite na vida dela como tu é; do contrário, ela será um rolo compressor.

2a carta:

A Pêssega: uma série de atitudes ingênuas e orgulhosas podem levar a um grande mal entendido, um grande ruído de comunicação. perda de valores por vaidade.

3a carta: 

A Falsiane: cuidado com a mentira e com a ilusão. o fascínio cega. palavras doces podem estar encobertas de segundas intenções, prenhes de veneno. alguém quer o suco da tua vida e vai fazer de tudo para vampirizar tua energia.

4a carta:

O Funkeiro: amante do sexo, drogas, samba, rock'n'roll. o ser errático que requebra os quadris na velocidade cinco do créo, que faz quadradinho de oito invertido. nascido do proibidão, desconhece a regra e a moral. pode ser a alma da festa ou o estraga prazeres.

5a carta:

A Sofrida: imersa na dor, não distingue tristeza, melancolia e cansaço. é a carta que rege o jogo. está enforcada, sacrificada. deu mais do que tinha e agora não tem como pegar de volta. deve aos traficantes da biqueira. entregou-se, mas foi rejeitada. chora e ninguém a ouve.

"achei um jogo pesado. quem sabe tiramos mais uma por descargo de consciência?", "a macabéa aqui aceita", "seja lá o que for, vai passar", "tem tanto sentimento, deve ter algum que sirva, cantou o arnaldo."

6a carta:

9 de espadas: a crueldade. nove espadas perfuram seu corpo. é mais que dor: é terror, é pânico, é horror.

"agora vou ser atropelado por uma mercedes?"