hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

 [a trilha sonora deste parágrafo é "eu bebo sim", na voz da Elza Soares.]

quando eu cheguei no churrasco dos amigos, no dia nublado, e reparei na Pequena, acho que conectei também com a força da sua ancestralidade. a força das mulheres negras é um repuxo de mar. eu achava que a isca do isqueiro esquecido era minha, quando na verdade ela sabia que se tratava de uma forma de eu começar a conversar com ela. desde o início era ela quem me queria, quem queria o meu destino, quem queria a minha vida na dela. e desde o início eu, um branquelo insípido, não tive outra escolha senão entrar nesse redemoinho de algodão e lavanda que era sua voz, seu cabelo. ela estava enérgica naquele dia. a Pequena gosta de beber, e eu tentei acompanhá-la na cerveja, primeiro, na cachaça, em seguida. sem sucesso. mas bebiriquei o destilado mineiro acompanhado de água. "cê não aguenta, não?", me questionou a Pequena. "aguento, mas hoje eu quero estar o mais lúcido possível." "por quê?", "porque hoje eu quero dormir pelado contigo." ela sorriu e pegou um baseado que circulava de mão em mão entre nossos amigos. "quer um peguinha?", e eu calculei rapidamente que sim porque sabia que havia docinhos e uma torta de chocolate com sorvete de creme de sobremesas. então: cerveja, cachaça, maconha, chocolate; só drogas leves. a Pequena me contava do seu trabalho, da mudança do Rio de Janeiro para São Paulo. da dureza da adolescência, isso sem nenhuma cor de drama. à medida que falava da sua história abria um sorriso porque conquistou tudo o que havia se proposto a conquistar: a mudança do interior pra capital, a entrada na universidade federal, o ingresso nos primeiros estágios de trabalho - sempre os melhores, muito bem posicionada nos processos seletivos. não porque era esforçada, mas porque tinha tesão em fazer o que fazia. e disse "eu até vou em manifestações anti-bozo, mas a maneira mais radical de mudar esse país é botando mais gente pra viver, é botando mais gente neste mundo, é dar sequência à linhagem de luta que me trouxe até aqui". fascinante, impetuosa. meus amigos presentes no churrasco passaram a me censurar. diziam que eu queria chamar a atenção dando beijos em uma mulher só porque eu estava com dor de cotovelo. repetiam que eu tinha nascido viado e que aquilo era heresia. que iam tirar minha carteirinha de passiva. que iam me excluir do decanato dos adoradores da Cher. um deles, já no final da noite, sussurrou no meu ouvido que não era com uma pepeca que eu iria tapar o buraco que o pinto do Nestor deixara em mim. o comentário nojento não teve réplica, mas merecia. a Pequena daria uma resposta à altura, mas quando ela chegou do banheiro eu já havia esquecido da grosseria e dei um beijo nela. minhas amigas queriam saber de onde eu havia tirado a lábia, a malemolência, a sedução. uma delas só soltou um "ai, se eu soubesse antes...", que eu também esqueci de comentar com a Pequena porque estava muito, muito, muito loucão. eu comi 3 fatias da torta de chocolate com 4 bolas de sorvete de creme. a Pequena só tomou mais uma dose da cachaça mineira e deu mais umas baforadas no baseadinho. fomos a pé pro apartamento dela. ela é bagunceirinha. nos beijávamos muito enquanto tirávamos a roupa um do outro - que, pra mim, levou um tempo longo e bem aproveitado. naquela noite meu pinto branquelo broxou (assim mesmo, com x [um uso chulo e desaconselhável pelos dicionaristas.], porque meu pintinho branquelo é chulo). perguntei se ela queria que eu fosse embora. a Pequena não se importou, "fica do lado de fora da conchinha pra eu pegar no sono?". e dormimos.