Escapando pela tangente

[...]ês viram? Foi horrível. Simplesmente foi queimada viva por um grupo de rapazes na cidade do Porto. Eu não sabia disto, foi quando, sabem? Fiquei impactado. Essas humanidades extremas me atingem, me afetam: essas humanidades demasiadamente humanas, do tipo queimar alguém vivo, bater até matar, torturar, abrir com bisturi, costurar a pele, mexer lá dentro. Muita humanidade, coisa humana que me assusta. É por isso que me pergunto se às vezes isso tudo que está aí, que vivemos quando acordamos; me pergunto se isso tudo não é um sonho ruim. É por isso que às vezes não quero pessoas por perto. Se é um sonho, é o meu sonho, e no meu sonho só entram as pessoas que eu quiser. Quando eu desmaio, se vou tirar sangue ou se me corto, se me machuco, eu sinto que sou sugado por um túnel longo em espiral de várias imagens de memórias, imagens de lembranças da minha história, espiral que leva meu corpo no turbilhão até lá uma ponta, um vórtice onde não há mais memória nem lembrança: e lá eu acordo. Lá eu estou plenamente acordado. Quando eu volto a sonhar, eu sou como que jogado de volta, lá de cima: jogado de volta ao sonho, cheio das ficções das lembranças da minha vida que passou - que já não é mais vida, é uma outra coisa que nem minha é. Penso ‘que merda, queria ficar lá no topo da espiral, no olho do vórtice’. Porque lá era onde eu estava acordado. Pra justamente ter que ficar longe dessas humanidades, coisas humanas que apavoram. O corpo é muito humano pra mim, talvez por isso eu desmaie com tanta facilidade, por isso eu implico tanto com o corpo e com as coisas dele. To sempre saindo, escapando pela tangente das coisas do corpo: sexo, comida, álcool, doença. Mas bem quando eu to conseguindo sair de mansinho, o corpo vai lá e me pega de volta! Fui ver uma exposição de um artista plástico que pinta personagens recorrentes: os mascarados; atletas mascarados. Achei belíssima. E o mais interessante é que ele só atribui máscaras aos seus homens, homens atletas. Porque suas mulheres quase sempre estão seminuas. Me fez pensar, essa distribuição peculiar de disfarces... E a nudez pode também ser um disfarce? Eu conheço gente que se disfarça tirando a roupa, confiando ao corpo a habilidade de encaminhar os olhares e as expectativas pro centro do vórtice do nosso sonho. Já eu, eu sou um dos mascarados – nem sempre sou atleta. Mas não é por ser um mascarado que eu sou um mentiroso: eu não uso disfarces. Adiar dizer quem se é não pode ser considerada uma atitude mascarada; é que eu realmente não sei ainda. E é provável que justamente por não ser atleta que sinto os olhares escapando pela minha tangente: eles querem o sonho, e eu quero acordá-los. Assim como eu sou puxado por um vórtice quando desmaio ao tirar sangue, e me julgo acordar do sonho, às vezes sinto os olhares escorregando e desistindo de despertar. Todo mundo quer viver no sonho, na matrix? Eu também quero, mas às vezes sinto necessidade de acordar. Daí advém minha facilidade pra desmaiar, pra resetar o corpo como fazemos com os computadores quando eles travam. [curto silêncio] To sentindo nos olhos de vocês que estão me escapando pela tangente![...]