Um breve partir

[...]bora. Mas é um partir breve, não vou demorar. Vê se não fica até muito tarde em frente ao computador: ‘saia pro mundo, caia do blog, na batida da vida se jogue’. Leia bastante, daqueles livros lindos que tu recitas de olho fechado parágrafos inteiros. Acho tão bonito quando teus cílios se encontram e tua boca mexe, quase sorrindo, falando aquelas palavras. Eu sei inclusive que tu lembra da disposição dos parágrafos nas páginas, e dos números das páginas, do volume das edições que tu recita. Resista às calças jeans. Elas te escondem, te engessam e te imobilizam. Tu é bonito assim, com os tornozelos à vista e com os calcanhares ousados. Não te preocupes comigo: derramei umas gotas de mirra na água e vi desenhos lindos. Será uma estada tranquila. Não consultei os astros, nem as cartas, pois tenho tido dificuldades em lê-los de maneira acurada e sensível. Eu os tenho interpretado às avessas. Regue as plantas, sobretudo essas do teu peito. Não dome o furor das tuas ideias; quando eu voltar, quero ser engolfado pelo redemoinho que elas provocam. Eu vou, sim. Talvez os dias se multipliquem e se dilatem enquanto eu estiver fora e talvez seja difícil manter intacto o teu rosto na memória. Ele já me aparece aos borrões contigo aqui na minha frente. Também não sei se vou conseguir manter acesa a chama da tua lembrança – já tentei fazer promessas desse tipo antes e nunca consegui cumpri-las. E não quero que tu te responsabilize por mim nas tuas memórias, que são tantas: vai procurar beleza lá onde ela de fato existe. Eu gosto de ti assim, me achando feio. Se eu parto, não é porque estou fugindo. Eu parto porque não suporto, porque não dá mais pra mim, e preciso de uns dias de leituras, escrituras e olhares perdidos no horizonte do Atlântico. Aqui as coisas pesam demais, e eu estou com os ombros doídos. Talvez seja o caso de me apartar do que me pesa, mas a questão é que sem o peso – e sem esse namoro, esse casamento e eventual divórcio do peso –, sem ele não consigo dar sentido algum ao que faço. Tem que ser pesado pra eu poder lidar com isso e fazê-lo leve. E o gosto da tua pele... O cheiro. Preserve-os o máximo que tu puder porque são preciosos. É provável que teu rosto embace, mas o teu gosto não sairá nunca da minha boca. Ou, pelo menos, daquilo que eu acredito ser o teu gosto. Daqueles que eu acredito que foram as nossas mordidas, quando eu quis muito tirar partes da tua carne. Daquilo que eu penso que foi nosso desejo: de silenciosamente dar colo um ao outro, num romantismo e numa tranquilidade nunca antes vistos em mim, mas que tu proporcionou, que tu avalizou com um piscar de olhos e um carinho sutil na minha barba. ‘Ela é macia’, tu disse, ou assim eu queria que tu tivesse dito se tudo isso realmente fosse como eu venho descrevendo. Esse é um breve partir porque, em verdade, não há muito do que se despedir. Nunca houve nada disso, tu sabes. Mas mesmo assim já sinto saudades. Tou indo, tá? Até br[...]