Cadáveres

[...]eixa eu tentar te explicar, não sei se consigo: tem um cadáver na minha casa. Bem ali, ó: na passagem do corredor que une o quarto, o banheiro à sala. Tem um cadáver estirado ali há dias. Há pelo menos três dias. Eu passo por ele e olho, desvio dele, passo por cima. Sempre que passo por ele eu lanço um olhar. Não consigo movê-lo dali. Acordo pela manhã e vou dormir à noite: ali ele jaz em velório. No meu velório. O corpo estirado no quase chão da minha quase sala é o de uma mosca que entrou pela janela da minha cozinha há pelo menos seis dias. Por três noites e três dias ela voou aqui dentro. Ao fim do terceiro dia ela morreu e ali ficou. Não quis tirá-la do seu leito. Do meu leito. Eu fico inclusive lisonjeado, de certa forma feliz, que ela tenha vindo até mim nos seus últimos momentos. Fico recontando sua trajetória, de que lugar ela veio, por que casas passou antes daqui, que ventos ou que luzes a trouxeram até minha pequena e bela ilha deserta para morrer comigo. Que mosca será essa que veio morrer comigo? Entende? Nenhum dos seus veio reclamar o corpo. E se fui eu quem morreu e ninguém deu-se por conta? Me pego às vezes pensando nisso, em morrer e não me dar conta, ou em morrer e ninguém se dar conta. Ninguém dar por minha falta. Não que isso seja um problema, mas coitados dos vizinhos, né? Acho que já posso enterrar a mosca[...]