Todas as fases do Fim - A Conformidade, parte 6

Sabe, que merda, pra eu ser alguém socialmente aceito eu tenho que ficar com todo mundo, tenho que trepar com todo mundo. Porque é inadmissível que alguém esteja solteiro. Porque se alguém ta solteiro é sinal de que tem algum problema – grave – com essa pessoa. Isso é culpa da nossa amiga carência. É sempre a carência. E é também sempre o medo de ficar sozinho, medo de nós mesmos, medo de acordar, de almoçar, de tomar banho e dormir sozinho. Medo de passar um dia sozinho. Medo de dançar sozinho, de beber sozinho. Quantas e quantas vezes eu comentei, lembra aquela vez?, eu comentei que bebi uma garrafa de vinho sozinho em casa uma noite (ta bom, eu sou bebum, adoro vinho, qual o problema, o fígado é meu e a cirrose também) e a guria me disse “aaaaaiii, que deprê!!! Beber sozinho em casa!!! Como tu é triste!!!”. Eu? Triste? Meu anjo, eu sou é muito feliz porque eu consigo fazer isso sozinho, já que a minha própria companhia não é algo que me assusta, pelo contrário, é algo que me apraz. Lembra disso? Pois é. Depois chamei ela de ignóbil, burra e ignorante, disse que o cabelo dela era mal-cuidado, que o cabelo dela era seco, que o cabelo dela era quebrado e bicolor, que ela tinha dentes podres. E que deveria ter meses que o namorado dela só gozava se pensasse estar comendo uma boneca inflável. Ela me chamou de bicha, a coitada. Eu disse “bicha, não! Pra ti é DONA bicha, sua vaca”. É, é isso aí. Não dá pra sentir pena de nós próprios, sabe?
Daí eu virei pra ele e disse “ta, eu acho que deu, né”, “deu o quê” ele me perguntou, “deu entre nós. Acho que a gente já se falou tudo. Eu sei que é complicado, mas não acho que a gente precise ficar aqui se digladiando até amanhã. Nem até o próximo minuto”. “É, eu também acho... foi tudo muito pesado”, ele disse. “Não te culpo por nada que tu me disse, apesar de ainda me doer bastante e apesar de eu ainda gostar de ti, porque tu pode não acreditar, mas eu gosto muito de ti. Desde a primeira vez que te vi. E eu entendo que tem vezes que não adianta a gente gostar muito de alguém porque esse alguém - ora que pena! - não vai ficar com a gente, porque esse alguém simplesmente não gosta da gente. Simplesmente, sabe” e eu queria muito um lenço, sabe lenço? Não, não os de pano (imagine se eu sou alguém de ter lenço de pano), de papel mesmo. Quando eu choro meu nariz escorre horrores. Daí eu peguei meu livro, e ele “que livro tu ta lendo”, “é um que explica a pós-modernidade” eu disse, “ah, que legal, e o que é a pós-modernidade?”. Eu virei pra ele, ele me olhou bem nos olhos. Fazia tempo que eu não olhava ele nos olhos, eu tinha medo. Olha o medo aí outra vez. Eu não encarava ele, fazia horas que eu não via sequer a sobrancelha dele (que ta tri mal feita por sinal), eu tinha vergonha de encarar ele. Mas ali eu encarei e eu sorri. “Compra um desses e lê. Leia muito, discuta com os amigos. Assim tu vai adquirindo cultura”, “eu não tenho cultura, né?”, “não, tu não tem cultura, mas isso é o de menos porque o mais importante e o mais raro tu já tem que é a inteligência”. Eu não tava defendendo ele, também não tava jogando confete. É verdade que ele é inteligente. Quando a gente gosta de alguém a gente quer que essa pessoa aprenda por si mesma, a gente quer que essa pessoa ande com suas próprias pernas. Foi por isso que eu mandei ele comprar e ler o livro em vez de eu contar a historinha. A gente quer que essa pessoa brilhe com sua própria beleza. Sabe esses namorados e namoradas tri ciumentos e ciumentas? Isso aí é mais que ciúme e muito pior: é inveja. Se um namorado é ciumento é porque ele não quer que o companheiro ou a companheira chame a atenção mais que ele próprio, ele não quer que o companheiro ou a companheira fale mais que ele próprio, seja mais bonito ou bonita que ele próprio. É tudo uma questão de ego. A gente sufoca o outro em nome de um ciúme, que na verdade é inveja, pra poder anular o brilho e a luz do outro. É a conclusão à qual eu cheguei. E eu gosto muito dele, ta, eu gosto sim, é, sou mulher de brigadiano, há-há-há-que-engraçado, mas eu gosto dele e eu quero que ele brilhe muito por aí. Mas bem longe de mim. Quero que ele pegue muitos caras sarados & definidos & musculosos, por mim ta tranqüilo. Ele é perspicaz o bastante pra um dia se dar conta que os abdomens de gominho e as costas de nadador e as pernas de corredor vão apodrecer e servir de comida pra milhares de centenas de vermes. É bom ter um corpão? Mas é claro que sim. Mas corpão é um detalhe (que nos toma tempo, dinheiro, paciência e uma pitada de ignorância) perto de outras características que não podem ser adquiridas só pelo exercício. Inteligência é uma delas. Bom humor é outra. Simpatia também. Um corpão, meu bem, a gente compra: pagando uma academia, um personal trainer, uma lipo-escultura, shake de proteína, anabol. Inteligência a gente não compra só comprando um livro e lendo. Nem a alfabetização a gente compra só pagando escola! “Tu me acha inteligente” ele perguntou, “acho sim, e acho que tu tem que te dedicar mais aos estudos. Só ter um pouco mais de disciplina. De qualquer forma, a pós-modernidade” eu explicando “é um contexto sócio-cultural que alguns teóricos concordam em dizer que vem depois da modernidade. Alguém é pós-moderno quando faz milhares de coisas ao mesmo tempo, quando É milhares de pessoas em si mesmo, quando tem vários círculos de amigos, quando em cada um desses círculos essa pessoa adquire identidades novas, mutantes. Às vezes até opostas. Pós-modernidade são frases telegráficas, idéias soltas que não obedecem a nenhuma regra de escrita padrão. Pós-modernidade são os laços efêmeros que a gente mantém com os outros, é a negação de qualquer institucionalização, tipo o casamento. Ou a família. Ou a escola. Por exemplo, quando a gente ‘fica’ com alguém na boate, isso é pós-moderno. Nossos pais não poderiam jamais ter ‘ficado’, se dado uns beijos, trepado atrás da moita depois de umas doses de vodka e ‘tchau, um abraço, até mais, a gente se fala’. Porque nossos pais são modernos, e a gente é pós-moderno” eu expliquei bem didaticamente. “Então eu e tu tivemos um laço efêmero aquela noite?”. “É, tivemos. Uma relação não-contratual, eu diria”. “Somos pós-modernos, então?”. “Eu diria que sim” eu respondi.
Daí ele se levantou e disse que tinha que ir embora, não sei o quê. Eu disse que também tinha que ir, que eram muitas emoções pra um pôr-do-sol só. Lá pros lados do Guaíba deveria estar lindo porque a cor do céu no horizonte era um vermelho-alaranjado, sabe? “Vamos comigo até a João Pessoa?”. “Por que eu iria?”, “porque eu gosto da tua companhia, apesar de tu ser chato. E arrogante. E ter milhares de cravos no nariz e pêlos encravados na barba”. Filho da mãe, né? Eu fui... bem feliz, eu fui indo. Os dois iam em silêncio. E eu pensei naquele momento que quando a gente gosta de alguém, a gente também deixa esse alguém seguir seu caminho, sabe? A gente deixa ir, a gente deixa seguir, a gente libera esse alguém para viver aquilo que tem que viver e quer viver. O caminho dele quem tem que trilhar é ele, ninguém mais. Esse desapego do outro é tri difícil, é doloroso, porque ninguém nos ensina a ser desapegado das coisas – e das pessoas. A gente sempre quer pra nós mesmos. Quando a gente gosta, além de querer ver o outro bem, feliz, a gente também tem que entender que o jeito que o outro vai achar pra ser feliz tem que ser respeitado. E se ele queria ir pra Redenção pra caçar os carinhas sarados, deixa o guri, sabe? Se ele queria ir pra noite fazer umas baladas de tequila, cerveja, maconha e chá de cogumelo, deixa ir. Eu também tenho o meu caminho pra seguir. Que não fica do lado do dele. Eu ia voltar pra casa pra limpar o vaso sanitário; ele ia voltar pra casa pra bater punheta. Pensando nos caras sarados. Me conformei com aquilo, parei de me debater. Não parou de doer, não, ainda doía, sabe, doía mesmo, mas eu estava certo que daquele jeito era menos pior. Era mais correto. Não com ele, mas comigo.
CONTINUA..........