Todas as fases do Fim - O Desespero, parte 4

O banco onde a gente estava sentado ficava de frente para o sol se pondo. Enquanto ele esfregava os olhos por causa da erva-mate, eu olhava pro sol lá atrás dos eucaliptos e jacarandás, havia naquela hora grandes nuvens que se erguiam altas lá no céu, e os raios de sol se projetavam para além delas em feixes de luz parecidos com holofotes que miravam em algum lugar muito distante de onde a gente estava. As nuvens tinham aura aquele dia. Passou um rapaz fazendo seu jogging diário: calção de corredor de maratona, sem camisa, mp3 player no braço esquerdo (bíceps e tríceps musculosamente bem definidos), pêlos bem distribuídos pelo peito e barriga, ah, não, não, aquilo não era uma barriga, aquilo era um abdome, porque tu sabe que eu tenho barriga, mas tem caras que têm abdome. É, abdome, com gominhos tipo de tábua de lavar cueca, de lavar meias sujas encardidas, sabes? Abdome que dá vontade de lavar meias sujas encardidas nele, ficar horas ali forçando nos gominhos até deixar o algodão das meias bem branco, bem macio, e depois pôr elas pra secar no varal que fica logo abaixo do abdome de gominhos. Digo, da tábua de lavar. E as pernas do rapaz corredor, bom, enfim, pernas que não eram grossas, mas nas quais era possível de passar em revista a todos os conceitos de fisiologia muscular, fibra por fibra pulsando cada vez que o pé pisava no chão, óculos escuros escondendo, quem sabe?, um par de olhos verdes, um par de olhos azuis, um par de olhos caramelo, um par de olhos cinza... Um belo par de olhos, tenho certeza. Um boné que deixava os cabelos, molhados de tanto suor, um pouco rebeldes saindo pra fora aqui na nuca e por cima da orelha. Não, não como o meu cabelo, porque em mim isso é a moldura do meu sofrimento, mas como nele, só no rapaz corredor esse cabelo ficava bem porque balançava enquanto ele corria (aliás, era a única parte do corpo dele que balançava enquanto ele corria. Ah, não, mentira. Tinha outra parte que balançava também, sabe aquela parte? É, o varal de estender roupas logo abaixo do abdome de gominhos, essa mesmo, que parecia ser um belo varal pra estender lençóis king size). E o rapaz corredor passou. Ficou tão legal de ver o rapaz corredor, lindo como ele só, contornado pelos raios de sol por detrás das altas nuvens, lindas como elas só, foi uma paisagem tão bonita e tão ameaçadora, tão significativa e tão pungente, porque o filho da puta (o filho da puta que estava sentado do meu lado, e não o filho da puta com gominhos que estava fazendo jogging, sim, porque qualquer cara com gominhos é um filho da puta em potencial até que prove o contrário, hahahaha, to brincando... Não to brincando nada), o filho da puta sentado do meu lado tinha até esquecido da erva-mate nos olhos dele e parou por alguns segundos pra dar um confere nos gominhos do rapaz corredor para em seguida, voltando a esfregar os olhos, tecer o comentário “bah, mas com esse aí eu até perdia uns trinta minutos”. Larguei a cuia junto da garrafa térmica e me engasguei com uma maré de lágrimas e soluços, tudo muito discreto, é claro, porque a gente cai do salto, a gente perde a peruca, a gente borra o rímel, mas jamais perde a compostura. Mas é verdade que me engasguei com aquela situação e com as palavras que ele recém tinha dito. Sobre mim e sobre o rapaz corredor. Porque tudo o que ele tinha dito sobre mim, todas as frases complexas, as palavras cáusticas, todos os apontamentos dos meus defeitos, tanto físicos quanto morais, as recriminações, as reclamações, tudo sobre mim ele tinha me dito de um jeito bem menos franco e honesto do que a simples frase que ele dedicou ao rapaz corredor. Escorei meu braço na garrafa térmica (ainda tinha água quente ali, mas jogar na cara dele pra quê? Pra ele perder mais tempo esfregando o rosto? Pra ele sair correndo pro hospital? E pra eu ficar sem água de chimarrão até o final da tarde? Porra, eu tinha até botado um chá pra ficar mais gostoso, aí eu já achei que não valia mais a pena jogar coisa nenhuma nele), e olhei pro lado extremo oposto de onde ele esfregava os olhos por causa da erva-mate que voou e chorei e chorei e chorei e chorei muito, mas sempre em silêncio, sempre bem quietinho porque quando a gente chora a gente sempre perde um pouco da elegância, então chorar quietinho nos deixa ainda um fiapo de dignidade que podemos vestir. O fiapo não é Prada, mas a gente se sente o próprio diabo, né? “Tem água ainda” ele perguntou, eu respondi mentalmente ‘muita água caindo dos meus olhos’, mas não pronunciei. Era hora de eu esfregar meu rosto, enxugar as lágrimas. Respondi com aquela voz anasalada de nariz entupido “não tem mais nada pra ti aqui”.

CONTINUA..........