Todas as fases do Fim - O Arrependimento, parte 5

Os olhos verdes dele se arregalaram “tu ta chorando” ele perguntou, “é claro que eu to chorando, seu viado escroto, é muito difícil ter que escutar as coisas que saem dessa tua boca suja” eu disse entre soluços e tentando limpar a água que ainda escorria dos meus olhos. É, eu falei “viado escroto” e “boca suja” porque eu tava muito brabo, muito doído por dentro, eu tinha que agredir ele de alguma forma. Sim, eu também acho que agressões nesse momento não valem de muita coisa, mas o que vale numa hora dessas, hein? Vale é falar tudo que se sente, tudo que se pensa, vale é celebrar a sinceridade e a honestidade, vale é dar tapas & beijos, vale é chorar por um sentimento que te signifique alguma coisa. E ele significava tanto pra mim. Depois que eu chamei ele de “viado escroto” entre lágrimas, ele não falou mais nada. Ficou ali sentado do meu lado mexendo com uns galhos secos no chão por horas, e eu sentado do lado dele com a mão tapando a boca e chorando por horas, e as pessoas passavam caminhando e correndo e umas passavam de dupla, de trio, passavam conversando, uns cães vinham cheirar nossos pés (a merda em que a gente estava pelo jeito não era só merda moral), passavam umas pessoas de bicicleta...
E veio uma criança, sabe? Um gurizinho coisa mais linda, negro, de cabelo power, uns olhos enormes bem pretos, deveria ter no máximo uns três anos. Tava de fraldas e de sandálias, veio correndo na minha direção e parou bem na minha frente, ali, a cinco passos de mim. E a criança ficou me encarando, sabe? E eu chorando e chorando, e a criança parou na minha frente e me encarou mesmo. E eu decidi encarar a criança. O guri ficou me olhando e franziu um pouco as sobrancelhas, tipo ‘por que tu ta chorando’, eu pensei ‘to chorando porque eu gosto muito desse rapaz aqui do lado, mas ele não gosta de mim do mesmo jeito que eu gosto dele, e ele ta me dizendo umas coisas bem feias que estão me deixando dodói’, a criança me olhou como quem diz ‘ah, eu sei o que estar dodói, eu às vezes também fico dodói e tomo remédio que me deixa melhor’, ‘mas do jeito que eu to dodói é diferente, do jeito que eu to dodói não tem bem um remédio que a gente possa tomar pra ficar melhor’, e a criança franziu de novo as sobrancelhas e me pareceu dizer ‘mas que dodói é esse que não tem como ficar melhor?’, ‘é um dodói que um dia tu vai ter também’, ‘mas eu não quero um dodói que não sara nunca’, ‘mas esse dodói tu vai querer ter, sabe, tu vai querer muito ter, tu vai gostar de ter, tu vai querer mais sempre e sempre, porque é um dodói que às vezes faz a gente sorrir bastante, às vezes faz a gente ficar bem feliz, só que machuca também, e deixa a gente de cama, mas é tão bom estar dodói assim, é gostoso’. A criança me olhou bem desacreditada, e eu inclusive escutei o gurizinho ‘mas se é tão bom assim, não podia se chamar dodói’.
“Vem, guri, deixa o titio tomar o chimarrão com o amigo dele, vem, vamos lá ver o chafariz que ta ligado, lá ó...”, a mãe pegou o piá ela pela mão e levou pra perto do chafariz. Bah, eu estava errado, sabe? Desde o início, bem errado. Não em chamar ele de “viado escroto”, porque ele é viado e é escroto também, mas errado em pensar que tudo tem que ser assim, sofrido, se jogando na cara um monte de palavras duras, me conformando com o fato de ele ter ATÉ curtido ficar comigo, de achar que eu ATÉ dou pro gasto, de dizer que me acha ATÉ bonito. Porque ele ATÉ poderia estar certo, MAS NÃO ESTÁ! Eu estava errado o tempo todo, sabe, porque a gente aprende desde cedo através das músicas e dos filmes que a gente ouve e assiste por aí que a paixão, ah!, a paixão só é boa quando é sofrida, só é válida quando é ganha à força, só é recompensada quando parimos ela a fórceps de um ventre que não existe. Sabe assim? A gente arranca paixão de onde não tem. Beber por causa de paixão, beber porque te deram um fora, beber porque te deram um buquê de flores. Beber porque o carinha com quem tu ta ficando há uns meses te pediu em namoro, beber porque o carinha com quem tu ta namorando há uns meses ficou com uma amiga tua. Ou amigo teu, bah, aí é foda, mas pode acontecer, hein?, eu sei de casos. É, a concorrência agora é desleal. Um mundo bem competitivo esse dos afetos & sexo & relacionamentos, não é mesmo? Não é mais apenas metade da população que conta na hora de se apaixonar ou fazer sexo, agora o povo todo ta se querendo, e viva Sodoma e Gomorra. Eu tava muito errado em relação a ele, não que eu esteja defendendo ele – porque não estou – mas eu tinha que me curtir mais. E saber quais são minhas qualidades. Porque é assim, eu acho, que se conquista alguém, quando a gente é seguro daquilo que a gente tem de bom. A criança tava certa, que história é essa de “dodói”? Desde quando “dodói” é bom? Se dói, não pode ser bom, a gente não pode querer se machucar, imagina! Paixão é boa quando nos faz bem, e somente quando nos faz bem. Porque de coisas que nos fazem mal o mundo já ta cheio. Pensa comigo: cartão de crédito. Bah, cartão de crédito é uma coisa que faz muito mal pra pessoa. Inveja também faz. Trabalhar num lugar onde a gente não quer estar, isso faz mal. Passar aspirador no carpete de casa toda a semana faz mal pra coluna. Chega, chega, aquilo lá não podia mais me fazer mal, eu me dei conta que eu tinha feito tudo errado desde o início. Eu queria resetar o meu HD pra começar tudo de novo, mas eu tava ali com o cara, né?, ele tava ali do lado ainda, mexendo com os galhinhos secos no chão. E eu quieto, pensando em todas essas coisas, ainda bem que parei de chorar e acabei com meu showzinho particular de final de tarde na Redenção. Minha única saída era pressionar ‘esc’.
CONTINUA.............