Todas as fases do Fim - A Verdade, parte 3

“Tu e essa tua agressividade gratuita sempre”, ele disse. “Gratuita? Gratuita? Eu escutei ‘agressividade gratuita’? Não pode ser...”, não podia ser, não podia. Eu que gosto dele, eu que tenho que escutar com quantos ele flertou numa tarde de calor e pouca roupa na Redenção, eu que tenho que ficar com cara de paisagem quando escuto comentários do tipo ‘bah, mas com aquele cara eu até perdia uns trinta minutos’, eu que tenho que deitar minha cabeça no travesseiro every fucking night e rolar na cama por horas só pensando nele, pensando por onde ele andará, em que novo corpo ele se revolverá naquele instante, pensando em que ele estará pensando, e depois eu poso de agressivo. E de agressor. E por acaso tudo por que eu passei por gostar dele não foi também uma agressão? “Sim, tu sim, sempre arredio e na defensiva, sempre agressivo com os outros, sempre mal humorado quando alguém não faz tuas vontades, bah, essas coisas que tu disse de mim não são verdade. E as coisas que tu diz de ti mesmo também a maioria não é verdade”. Oi......? Como assim, ‘a maioria das coisas que tu diz de ti mesmo não é verdade’? Tu entende minha aflição agora, né? O guri estava ali me dando nos dedos, quando na verdade era eu quem deveria esculachar com ele até o último pentelho e deixar ele com a cara lá no chão. Mas, pois é, eu tive de escutar isso & muitas coisas piores. Ele se virou pra mim no banco e subiu a voz “porque tu é assim. Arrogante e chato. Pra que me dizer essas coisas?”, e eu pensei ‘aloooooooooouuuuu, é tu quem tem que calar a boca, bicha escrota’, e a minha indignação foi tanta que eu me calei. Sim, fiquei quieto, tomei nos dedos, fiquei nervoso e fiquei quieto. “Eu to há horas pra te dizer que eu até curti ter ficado contigo aquela noite”, o quê? ATÉ curtiu ficar comigo? Fiquei passado, né? “mas tu é tão distante e frio que nem deve ter percebido que teve um dia que eu te convidei pra sair, pra gente poder ficar de novo, mas tu sequer respondeu meu convite” e eu juro que eu não quis ir naquela boate porque eu não me sentia na obrigação de ver ele dando em cima até de poste de luz, por favor, me respeite, “outro dia tu foi lá em casa e tu queria tomar água, e não tinha água, e eu saí pelo prédio atrás de água pra tu beber, consegui a porra da água, só porque tu pediu, só porque tu queria beber, e tu me disse um ‘obrigado’ que eu duvido que alguém tenha escutado, eu mesmo não sei ainda se escutei tu articular essa palavra na tua boca ou se foi só uma fantasia da minha cabeça, sabe quando tu deseja muito ver ou ouvir alguma coisa que tu acaba acreditando em coisa que não existe”, e foi me subindo um ódio por dentro, uma raiva, um calor, e eu continuava tomando aquela água quente de chimarrão tão rápido que nem senti minha língua, minha garganta e o céu da boca queimando, mas eu sentia minha mão tremendo cada vez que eu enchia a cuia de água porque eu não conseguia acertar o lugar certo de derramar a água e acabava respingando na minha mão, me queimando (por dentro e por fora, eu estava todo queimado), “Tu até é bonito, cara, tudo bem que não tenha corpão e que seja um pouco magrinho demais, mas tu até que dá pro gasto, tu tem uma pegada legal, mas tu usa umas roupas meio forçadas às vezes, umas calças nada a ver que não te valorizam, sei lá, tu tem uns gestos muitos circulares e uma voz indefinida, num tom estranho, sei lá, um cabelo muito comprido aqui assim nas orelhas e atrás, na nuca, tu tem uns tufos de pêlos que te deixam parecido com um personagem peludo de Star Wars, um pescoço meio comprido demais também, e se a gente chega perto do teu rosto dá pra ver os milhares de cravos que têm no teu nariz e na tua testa, os pêlos de barba encravados logo em baixo do nariz, bah, é meio dangerizante, e esse contexto todo te deixa um pouco feio, sem graça, sem personalidade nenhuma. E me desculpa, ninguém quer ficar com alguém assim, com alguém nada a ver, e tu é todo nada a ver”, ele continuou falando, e eu só fechei os olhos porque eu não queria ver nada, não queria escutar nada, aquilo tava machucando e machucando e machucando e eu queria fugir pra um outro mundo qualquer de dentro de mim, “ou daquela outra vez que a gente tava naquela festa anos 80 e que pra onde tu ia eu ia junto pra ver se tu te ligava que eu queria dançar contigo, ficar contigo, e tu sempre fugindo, e quando eu tentava falar contigo tu sempre te saía com uma lição de moral imensa, um discurso ridículo sobre ética nas relações pessoais, e sobre infantilidade emocional, e sobre como eu sofria de uma síndrome de Peter Pan. Isso foi me enchendo o saco, foi saturando, foi me incomodando. Porque tu sempre tem alguma coisa pra dizer, tu tem sempre um ponto de vista e uma opinião sobre alguma coisa, tu sempre pensa, pensa, pensa, tu pensa demais, cara! E isso te deixa muito pouco sensual, isso faz com que as pessoas não se interessem em fazer sexo contigo, porque gente que fala demais e pensa demais age de menos. É por essas e outras que as pessoas fogem de ti, cara, porque tu é arrogante, porque tu é distante, porque tu é inseguro, e porque tu não tem sex-appeal nenhum. Eu perdi o tesão por ti, perdi mesmo. E hoje acabo sentindo mais pena de ti do que saudade”. Bateu um vento forte que espalhou erva-mate e jogou uns tocos nos olhos dele. Quanto mais ele esfregava, pior ele ficava, mais vermelhos ficavam os olhos verdes dele. Admito aqui que senti um leve prazer pela dor física que ele pudesse experimentar.

CONTINUA.........