Todas as fases do Fim - A Revolta, parte 2

“Deixa eu ver se eu entendi”, falei com um sorriso de deboche nos lábios (mas é claro que ele não entendeu o deboche, ou entendeu perfeitamente, porque nos lábios dele também tinha um rastro mesmo que difuso de deboche. E de ironia. E de cinismo. E de maldade), “tu vem pra Redenção pra tirotear pra todo lado. Aí ontem tu encontrou um cara com um corpo definido, que vai ao cinema, que discute sobre cinema, que entende e aprecia vinhos e tu achou o máximo tudo isso. To certo”, eu perguntei pra ele. “É, isso aí, cara, ele é muito gente fina e é tri bonito, bah, muito gato mesmo, peito bem definido aqui assim” e passou a mão na altura do diafragma em direção ao esterno, “uns ombros legais, umas costas largas de nadador e umas pern...”, aí eu fiquei puto. Interrompi ele dizendo “olha, não sei bem porque tu ta me dizendo essas coisas todas, algum motivo bastante forte tu deve ter pra me dizer, já que faz uma cara que eu to tentando levar a conversa pra um outro lado que não seja das tuas conquistas & práticas sexuais” eu disse, brabo, irritado, enchendo a cuia de água quente (que estava prestes a voar das minhas mãos, mas não, a educação pequeno-burguesa que meus pais me deram sempre surte efeito nas horas em que eu mais preciso ser um selvagem), “só que eu acho que tu ta fazendo um papel bastante ridículo e patético falando essas coisas pra mim”. Aí ele “ah, ta, então desculpa, eu só tava tentando conversar”, se ajeitando no banco, virando a cabeça pra bem longe, desviando o olhar pro lado oposto a mim. “Que conversa é essa? Tu acha que eu quero saber dessas coisas” perguntei, “sei lá, talvez tu quisesse”, “não, não quero, não quero mesmo, até porque sei bem como tu faz pra chamar homens pra esse teu corpo, afinal de contas o palhaço aqui já caiu nesse teu papinho mole de pseudo-intelectualóide babaca, o palhaço aqui caiu achando que alguma coisa de interessante poderia emergir desse mar de lugar comum que é tua cabeça” eu disse, sorvendo um longo gole de água quente através da bomba, e aquilo doeu, sabe, doeu o gole de água quente e doeu dizer aquelas coisas porque se por um lado eu penso que ele é um pseudo-intelectualóide babaca, por outro eu sei que ele é inteligente e esforçado (bah, ‘esforçado’ é péssimo, mas em todo caso não consigo pensar em outra palavra que possa servir melhor que esta), ele tem conteúdo, tem sim, eu sei que tem. Só falta ali um pouco de, digamos, disciplina augusta para ele se tornar aquilo que a gente chama de ‘pessoa culta’. O que na verdade eu acho desnecessário, porque o que importa é a inteligência – que ele tem – e não a cultura – que ele pode vir a ter. E eu já estou tentando defender ele. Só sei que foi difícil de dizer aquilo, e ele falou num tom de voz mais baixo, olhando pro chão “ah, então é isso que tu pensa de mim...”. Isso me MA-CHU-COU! Doeu, foi péssimo ter escutado! Falei “puta, tche, penso sim! Olha as coisas que tu fala, o jeito que tu fala dos caras que tu conhece! Me revolta o jeito irônico que tu usa pra te referir aos idiotas que vêm até ti como moscas vêm na merda” e isso doeu um pouquinho mais. Silêncio entre nós, só o burburinho das pessoas caminhando e correndo, das crianças brincando, dos cães buscando a bola que os donos jogam longe, o vento nas folhas das árvores e os pássaros (malditos pássaros, cagaram no banco, exatamente entre mim e ele! Não pode ser bom sinal!), silêncio que durou muito tempo para um assunto tão duro. “Sabe o que eu acho mais estranho” perguntei. Silêncio ornamentado pelos mesmos figurantes anteriores. “Sabe”, perguntei de novo. Ele se virou pra mim “o quê”. “Acho estranho tu achar uma maravilha ter encontrado um cara na Redenção que pode vir a fazer um dia – talvez, quem sabe, hipoteticamente, num futuro bem nebuloso e incerto – aquilo que eu fiz contigo uma vez. Lembra disso? Quando a gente foi ao cinema ver um filme super cabeça, depois a gente saiu pra tomar um vinho chileno tri caro. Sentamos numa mesa de bar e tivemos uma conversa legal, falamos sobre coisas interessantes, a gente descobriu um ao outro, a gente fez isso, caralho. Qual é a diferença, hein, posso saber?”. Silêncio horripilante novamente. “Eu acho que sei” falei, pra cortar o silêncio e pra jogar verde uma dúvida que há muito me perseguia, “acho que eu sei bem qual é a diferença... É que o cara tem o peito tri definido, tem uns ombros legais e umas costas largas de nadador. Eu, mais humildezinho, não tenho nada disso. Tem uma larga diferença, de verdade, sério mesmo, larga é a diferença entre ir ver um filme europeu e depois tomar vinho chileno com um cara sarado e ir ver um filme europeu e depois tomar vinho chileno com um cara magricelo. Mas parabéns, acho que o teu sonho de consumo sexual já está no teu encalço”. Ah, falei. Falei mesmo, enchi o saco e falei, enchi a boca pra falar e falei. Queria saber se ele não tinha mesmo curtido ficar comigo porque eu sou um cara normal como qualquer outro, queria saber se ele ta na putaria pra pegar só os que são MUITO LINDOS, se ele ta com o rodo na mão e só pensa em pegar ‘os mais gatos do orkut’, queria saber se a noite que passamos juntos vai ser motivo suficiente pra fazer ele entrar naquela comunidade ‘já fiz um feio feliz’. Sabe essa comunidade? Acho ela cruel, muito cruel. Será que ele ta, hein? Deve estar, imbecil. Se ele estiver eu deleto ele do meu orkut.
CONTINUA..........