O que há de novo num dia qualquer?

[...]empre aquela mesma ladainha sem fim, ‘por que eu sofro?’, ‘por que eu to solteiro?’, ‘eu sou feio?’, ‘tu te interessa por outros caras?’. Sabe? Cansa. Aí eu falei que talvez ele estivesse exigindo demais dos outros, que talvez ele tivesse muitos requisitos a serem preenchidos de antemão. Não é assim. Mas vai convencer. Eu, eu to mesmo é cansado desse troço. Não tenho mais paciência, não. Por exemplo: há anos eu desço as escadas do meu prédio, do apartamento até a portaria, e numa das janelas da escada tá lá um pedaço de papel dobrado, bem dobradinho, como se fosse um calço pra janela. E o papel tá lá dobrado, meio enrolado, pousado na janela há anos! Ninguém tira ele de lá, nem eu. Mas eu não tenho que fazer isso, quem tem que fazer é a zeladora que cuida da limpeza das áreas comuns do prédio. Há dias, semanas quase, eu ando na calçada aqui da rua, vou e volto do trabalho, da academia, e tem uma embalagem de camisinha jogada no chão. É uma embalagem metalizada com a marca da camisinha em vermelho, e tá rasgada numa das pontas. Quer dizer, pelo menos a camisinha não tá lá dentro. Não sei se foi usada, mas não tá lá dentro. E daí que a embalagem tá lá, entendeu? Ninguém tira, ninguém põe na lixeira, ninguém varre. Nem eu! Mas sou eu quem tem que fazer isso? Eu canso de ver pessoas caindo na rua. Canso! Às vezes parece que elas esperam eu chegar perto pra se jogar no asfalto, cair por cima de uma placa de rua, tropeçar no meio fio da calçada, algo assim. Aí eu saio correndo pra ajudar. Já levantei três pessoas nos últimos meses. Tem um grupo de moradores de rua que mora perto aqui de casa e eu sempre passo por eles quando vou trabalhar. Hoje eu passei por um deles que é cadeirante. Ele é bonito, muito bonito, tem pelos pelo tórax, é forte, tem uma barba por fazer que não é tão por fazer assim. Ele é morador de rua cadeirante de butique. Hoje eu passei por ele e ele disse ‘ô, dos meu! Tem uma moeda ae?’. Eu o levaria pra casa, daria banho, não faria a barba porque gostei da barba dele, mas cuidaria dele, compraria pra ele uma cadeira de rodas com motor. Mas naquele momento eu não tinha moedas pra dar. E eu deveria dar? Ou deveria dar um beijo no morador de rua cadeirante, passar a mão pelos seus cabelos e perguntar ‘fala aí, é uma matéria que tu tá fazendo? Pra qual jornal? Ou é uma pesquisa etnográfica?’. Ninguém acredita que um morador de rua, cadeirante ainda por cima, possa ser bonito. E muito mais difícil é aceitar que a gente pode sentir tesão por moradores de rua. Pra mim não é tão difícil assim, mas eu queria ter um pretexto. Ora... tenho todos os pretextos do mundo pra me aproximar dele. Muito contrário o que aconteceu hoje, por exemplo, quando eu acordei às oito horas da manhã pra esperar ‘os técnicos da tv por assinatura’. Tá bom, fui dormir super tarde, mas às oito eu tava de pé, e com a firme intenção de descontrair com ‘os técnicos da tv por assinatura’. Vesti só uma bermuda, sem cueca. Piriguete da NET. Tocou o interfone por volta das dez horas, e quando eu atendi: ‘é da NET’, uma voz feminina, porém masculinizada. Atenção: eu disse voz feminina masculinizada, e não voz masculina afeminada. Sim, era uma mulher! Uma mulher! Lésbica! Veio puxando papo comigo sobre futebol: hellooo?!? O que eu queria mesmo era o morador de rua cadeirante! E essas coisas todas, esse estranhamento, essa ousadia, esse escândalo que é afirmar que eu queria mesmo o morador de rua cadeirante, essa obscenidade que eu digo e que eu afirmo que eu esperei ‘os técnicos da tv por assinatura’ sem cueca, o papel na janela da escada, a embalagem de camisinha rasgada, a ladainha da solteirice rabugenta que eu detesto: isso tudo me separa das pessoas e faz as pessoas se separarem de mim. Elas me censuram, reprovam essa sujeirada toda. Essa lascívia, essa languidez: as pessoas têm medo disso. As pessoas reprovam isso. Pra muitos, eu deveria, sim, tirar o papel da janela, colocar a embalagem de camisinha na lixeira, jamais sentir tesão pelo morador de rua cadeirante e sempre usar cueca quando ‘os técnicos da tv por assinatura’ vierem na minha casa. E eu faço tudo do avesso. O pior de tudo é que eu tenho um pote cheio de moedas aqui em casa. Mas isso ainda pode me servir no futuro {gargalhadas!}. E a minha grade de canais, aí eu vou ter que ligar pra central de atendimento de novo, pela quarta vez, pra eles ajustarem a seleção de canais, já uma parte pegava no quarto e outra na sal[...]