Erosões

“Olhos firmes”: nunca tinha me debruçado nesta expressão; “olhos firmes”. Olhos que não tremem, que não piscam? Grandes olhos sem rosto, sem pálpebras, sem cílios, que não param de ver o tempo todo? Olhos que nunca descansam, cujas pupilas dilatam ou expandem de acordo com a luz, mas que de todo modo captam todo o campo de visão?

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A ilha deserta habitada por Tadzzio admite pequenos prazeres, como o espreguiçar dos dedos dos pés que se esticam à frente e à cima; o ar-condicionado; os filmes pornográficos na grade de canais pagos; a casa fechada pros vizinhos, trancafiada pra rua, cuja chave jamais fica pendurada no miolo da fechadura mas sempre dentro de uma gaveta, de um bolso ou de uma mochila; água mineral para o chimarrão de todo dia; os livros (pequenos mundos colecionados nas estantes); as músicas (pequenos corpos feitos de som). Apenas um espelho, que ora o seduz, ora o trai. É uma pequena ilha, bela ilha. Ela está se separando do continente, ou dos continentes, migra aos poucos num movimento centrífugo lá pras bordas do mundo onde moram os monstros (os nossos monstros que colocamos lá para que nos lembremos de que de lá não passamos).

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A pequena e bela ilha deserta de Tadzzio está se destacando, como folha picotada, se descolando. Nos pequenos prazeres que ela lhe oferece, ela traz embutidas pequenas dores, arranhões e traições. Trair não é algo ruim ou censurável, assim como a dor também não tem esse matiz: quem entra na sua pequena e bela ilha deserta deve saber doer da mesma forma como deve saber gozar. A janela de seu quarto e a janela da sala estão quase sempre fechadas, a não ser nas tardes de verão que, devido ao posicionamento do sol, no quarto entra uma luz forte que age como bactericida nos seus travesseiros. No quarto há muita dor e muito prazer: a cama é seu navio à deriva, sem rumo, túmulo do corpo. E que corpo... O que esse corpo tem a contar não são muitos que ouvirão, ou que se interessarão em escutar. Aquilo do que ele é feito e aquilo o que ele faz, aquilo que o dobra e aquilo o que ele faz dobrar: história de erosões contínuas feitas da pele pra dentro, rio de lava comendo suas margens. É um corpo de olhos firmes. É por isso que toca música na pequena e bela ilha deserta de Tadzzio: porque as músicas são pequenos corpos feitos de som que ele estupra e violenta, extrai deles prazer e dor, os dá de comer e os tortura. Sem a música essa pequena e bela ilha deserta não seria bela, seria apenas uma pequena ilha deserta.