Suicídio, eutanásia, aborto, pena de morte: cadê a vida?

[...]urdo, um total absurdo. Porque não é a vida de qualquer um que pode ser tirada, nem a vida de qualquer bebê que será salva. Quem morre pela pena de morte já foi condenado muito antes de ter cometido o crime: toda a situação de vulnerabilidade dos “delinquentes” já os coloca no banco dos réus. Pelo menos aqui no Brasil isso é evidente. A gravidez que os igrejeiros querem preservar proibindo o aborto é a vida dos bebês de classe média pra cima. Porque a vida dos bebês de classe média pra baixo já vem sendo excluída da possibilidade de ser considerada “vida” há muito tempo, e o corpo das mulheres da classe média pra baixo já vem sendo abusado violentamente desde que elas nascem – isso se elas chegam a nascer, se a gravidez que as porá no mundo lograr sucesso, tendo em vista a qualidade do serviço público de saúde. É, não adianta franzir as sobrancelhas assim: já falaste com alguma mulher que fez aborto? Não é simplesmente uma questão de “não quero ter o filho”. É muito além e muito aquém disso. Já falaste com alguém que está condenado à morte por algum crime? Não é simplesmente “quis matar e matei com requinte de crueldade” – não adianta citar exemplos de filmes norte-americanos porque isso não vale! Mas por outro lado tem o suicídio, que só virou um tema de relevância sociológica, um “problema de gestão pública da população” quando a vida – a minha vida, a tua, a deles, supostamente todas as vidas – foi efetivamente tomada como “algo”, como um “bem” a ser gerido. Ou tu pensa que a minha vida, ou a tua, é muito mais que um objeto? Pra nós talvez seja mais, sim. Quando estamos na iminência da morte encontramos esse “algo mais”, essa preciosidade que diferencia nossa vidaobjeto da nossa vidapotência. Quanta coisa a gente pode fazer quando estamos vivos! E só o que fazemos e solapar essas potencialidades todas, trabalhando como uns camelos, nos enfiando em relacionamentos infrutíferos, discutindo com todo mundo por razões risíveis, malhando horas na academia pra ter barriga tanquinho. A gente pode mais, sempre mais e sempre melhor. Mas também no momento em que nossa vida perde as potências, as possibilidades de criar mais e mais vida pra nós mesmos e pros outros que nos rodeiam... Que mal há no suicídio sem drama? Que mal há na eutanásia “esclarecida”? Eu não quero vegetar, eu não quero dar trabalho e despesa, eu não quero andar de fraldas, com uma sonda enfiada no meu pinto e no meu intestino, eu não quero. Eu não quero acabar com Alzheimer e longe da minha casa, das minhas coisas, do lugar que eu construí pra mim. Eu não quero ser mais um corpo cuja “vida” precisa ser preservada a todo custo, seja em nome de alguma religião que trabalhe com as noções de céu-inferno-umbral, seja por causa da pensão, da aposentadoria, ou o diabo. Até lá eu vou ter acumulado um patrimônio razoável, vou ter um seguro de vida – se é que isso vai existir quando eu estiver próximo da morte. E eu vou dividir isso tudo pr’aquelas pessoas que forem importantes pra mim e, sobretudo, pr’aquelas que tiverem muita potência de vida! E se eu não tiver nada pra deixar como legado, seja dinheiro, bens ou afetos, então será mais fácil morrer (será?). E eu vou providenciar na minha morte. Na primeira suspeita que eu tiver da impossibilidade de viver produzindo e sendo útil social e politicamente, eu providencio a minha morte. Só espero ter a lucidez de saber o momento certo. Se bem que... Essa minha noção de vida, vidaútil, vidaqueproduz, vidarrelevante: essa noção não deixa de ser vidaproduto, vidaobjeto. Talvez eu precise superar essa ideia e pensar numa outra concepção de vida que dê conta de tudo aquilo que excede a “produção”, a “utilidade”, a “docilidade” da vida. É só vidaútil que vale? Quais são as vidasúteis? A minha certamente é uma: muito trabalho, pouca recompensa, nenhum prazer, nenhum gozo... e os desejos que sinto são todos colonizados pelo dinheiro e pelo poder. Cadê a vida...? Tá aí no teu bolso? [risos] Será? Acho que não... talvez, não sei. Só me recuso a pensar que vou morrer sozinho. Acho que é o pior medo que tenho: morrer sozinho. Só, sem ninguém por perto. Posso morrer torturado, mas que tenha alguém por perto. Não precisa pegar na minha mão, nem dizer “vai em paz”. Mas eu não quero estar só. De resto, tudo tá valendo. [...]