O princípio da ruína - Prólogo

O que eu vou contar a seguir ainda não aconteceu. Mas eu sei que vai acontecer porque posso sentir. Não é feitiçaria, não é premonição ou algum dom extra-sensitivo. Sinto que acontecerá porque posso fazê-lo, e vou fazê-lo. E não farei pelo bem dos envolvidos, nem pelo meu compromisso assumido na pia do batismo de amar ao próximo. Sei que as conseqüências disso que estou prestes a fazer (na verdade, eu já comecei a fazer) serão, sem dúvida alguma, interpretadas pelos outros como algo maravilhoso, algo saudável e bonito, bastante de acordo com o compromisso da pia de batismo aliás. Se assim o quiserem, eu não os proíbo, tampouco os desmentirei. Minha idéia inicial, entretanto, não é tão nobre.

Como disse, eu já comecei a fazer. Aos poucos vou pisando com cuidado nesse chão movediço e descobrindo por quais brechas eu posso infiltrar a lama viscosa ruína. Asa de Borboleta já experimentou mudanças desde que me empenhei em escanear suas fendas, num trabalho minucioso de procura pelas fraturas ao longo de sua extensão. Essa atividade não é difícil, é bom deixar claro. Asa de Borboleta é fino, delicado, tão sensível que um sopro meu nos seus ouvidos já o faz produzir fissuras nessa lisa camada superficial de consciência. Produzo fissuras e imediatamente após produzi-las eu injeto nelas uma densa solução de dúvida, o que estufa Asa de Borboleta com pesar e receio. Seu pesar e seu receio, porém, não são de minha responsabilidade. Eles surgem a partir das suas dúvidas, que eram minhas e que agora a ele pertencem, e só existem porque a incerteza as faz nascer. Mas Asa de Borboleta é bastante volúvel: tem essa capacidade extraordinária de reciclar as investidas externas, o que o impede de sucumbir. Engana-se ele, porém, se pensa que meu trabalho é inútil. Eu o estou vacinando como quem introduz no organismo um vírus letal numa acertada medida capaz de fazer com que a doença não o atinja e, por isso, adie pra mais além sua morte. Estou em franca campanha de vacinação para Asa de Borboleta, mas como eu disse, isso não tem a ver com o bem que desejo pra ele. Eu apenas quero desequilibrá-lo e destituí-lo do conforto de manter-se em segurança. Onde houver platôs constantes em Asa de Borboleta, ali eu também estarei e com fúria lançarei contra eles a flecha preta do “será?”.

É aqui que minha empreitada se torna mais dura, porém mais excitante. Porque um dos platôs de Asa de Borboleta é Dente de Tubarão. Dente é mãe, rainha e juíza no planalto descampado onde fixou domicílio. Ela governa as virtudes, reina sobre as atitudes e julga os caminhos. Dente de Tubarão é uma personagem diligente e discreta, mas pontiaguda, portadora de uma precisão maquiavélica quando se trata de destroços. Lâmina afiada, serrilha cortante, ela rasga tecidos muitos mais espessos que o veludo consciente de Asa de Borboleta, e justamente por isso ela o detém prisioneiro em suas celas cheias de luz, cheias de janelas com vistas para fora, celas bem feitas, bem acomodadas num dos platôs que compõem Asa de Borboleta. Dente de Tubarão é tão desenvolta no que diz respeito à escravização de espíritos que foi ardilosa o bastante para construir uma prisão dentro do próprio Asa de Borboleta, belíssima e diabólica prisão, onde o mantém de refém como se ele não soubesse de sua condição. Mas ele sabe. E ele se apraz disso. Sente prazer em ser acorrentado às formas seguras e estáveis que o permitem ser despreocupado e o impossibilitam de ser errante. É nas descontinuidades de Asa de Borboleta e no planalto de Dente de Tubarão que meu trabalho se ocupa: alargarei as rachaduras daquele a tal ponto que a cisão seja uma dobra profunda, um rasgo esfarrapado, um arrombo na sua superfície, e nesta introduzirei topografia brutal, criando vales imensos, abismos escuros e cânions secos.