Cartas a uma Jovem Bicha - Para a bicha morta

Querido Morto;

Desculpe-me por todos esses longos quatro anos que me impediram de te escrever minhas cartas fúnebres. Sei que não há desculpas, todavia; aí onde estás elas não existem. Mesmo assim te peço para fazeres um esforço e lembrar como é difícil estar sob a Terra entre os humanos, lembrar sobre como somos displicentes uns com os outros e sobre como erramos com uma insistência exasperante quase todo o tempo. Eu sigo sendo um humano, Morto, por mais que haja momentos em que eu recuse esta classificação. E sigo errando, sou errante. Errei contigo, deveria ter mandado notícias mais seguidamente. Perdoa teu amigo mais novo, ele ainda aprende aos poucos a arte da gentileza.

Muito se passou desde minha última missiva. Terminados os estudos básicos, me detenho agora a prospectar motivos secretos e razões subterrâneas do porquê somos tão apegados ao sexo e ao corpo. É divertida essa minha tarefa, mas incrivelmente não me afastei do tema da morte tanto quanto eu poderia, nem tanto quanto eu gostaria. Estou ainda às voltas com doenças e enfermidades físicas e simbólicas. Trabalho para adiar sempre um pouco mais o dia da morte de alguns, mas há momentos em que não tenho sucesso. Eles se vão mesmo assim. Mais ou menos do mesmo jeito que aconteceu entre nós. É minha sina, será?, viver para tentar opor-me à morte e invariavelmente fracassar?

Não estou triste, porém, com essa situação de desvantagem. Meu trabalho também inclui arte, também inclui escrita, o que significa que posso criar coisas belas. Há sucessos no meu caminho. Não vejo grandes holofotes ou adornos do chão até o alto nesse meu percurso profissional, mas posso te assegurar que os estudos sobre os mistérios das contradições humanas me fascinam. Quando em contradição, um alguém pode fazer de tudo, não é, Morto? Por falar nisso, cuide de seu coração. Sabemos que há momentos em que ele bate descompassado, vítima das tuas próprias ciladas.

Há vezes em que chego próximo do telefone e só tiro o pó por cima das teclas. Há vezes em que caminho longas jornadas pelo carpete da minha sala, que vem até meu quarto, e abro a geladeira para pensar sobre o que será de mim na próxima semana. Tenho muitos amigos, mas nenhum deles pode saber de nada disso que estou te contando. Há vezes em que falo alto, em que rio e comento as notícias que vejo na televisão, há vezes em que choro ao assistir uma propaganda ou ao ouvir uma música. Há vezes em que repito recorrentemente um discurso inflamado sobre ética, sobre sexo, sobre amor; passo e repasso meus argumentos e minhas expressões faciais, o tom da minha voz, para parecer dramático e convincente. Por favor, queime esta carta logo depois de lê-la. Há vezes em que ando nu pela casa, ora fazendo de conta que estou vestido como a realeza, ora assumindo minha nudez concupiscente. Há vezes em que chamo por ti, para vires me buscar, e há vezes em que apenas lembro que ainda sou capaz de sentir saudades tuas. E faço tudo isso, tudo e muito mais, na completa absoluta solidão. Falo sozinho, mas não porque acredito haver sentado no sofá ou de pé no batente da porta um amigo e um inimigo imaginários. Falo sozinho para eu me escutar melhor, para eu me analisar, para eu ouvir minhas idéias e ordenar meus pensamentos. Falo sozinho para descansar dos outros, para fingir que os outros não existem e que só eu sou o protagonista deste filme. Os demais são peças de jogos de computador.

Hoje eu fui correr no parque e pensei sobre como deve ser a morte e seus momentos iniciais. Ou os últimos momentos de vida. Pensei nisso porque, na corrida, meu corpo estava sendo movimentado ao máximo, requisitado ao máximo, estava vivo na sua maior medida possível. Eu gosto de sentir meu corpo vivo, gosto de mexer com ele, gosto de sentir dor e desmaiar. Tenho uma vaidade discreta, mas pesada; me importo com meu corpo e com o dos outros. E como será, meu deus, como será desprender-se dele? Por que lado saímos? Ou não saímos? Ou imediatamente entramos num próximo?

No fim das contas, acredito que faço bem em falar sozinho. Porque penso que talvez a única certeza de que nos damos conta quando morremos é que estivemos, o tempo inteiro, sozinhos.

Tu que já morreste poderias me confirmar se estou certo?

Preciso passar aspirador de pó no meu carpete agora. Ainda tenho uma palestra para dar para mim mesmo ali na sala. Termino meu texto aqui por enquanto.

Prometo que te escrevo com mais freqüência.

Ah, esqueci teu endereço: é Céu, Inferno ou Purgatório? Eras cristão, não eras? Desculpe-me (dessa vez por todas), mas eu não sei para onde vão os demais tementes.