Cartas a uma Jovem Bicha - Além do corpo

Eu vou começar a escrever e não quero ser interrompido até eu terminar a minha argumentação. Cala-te, ponha os óculos e leia.

Eu não pensei que eu chegaria esse ponto nem que eu pudesse atingir esse espaço. Não, eu não pensei. Eu não penso quando faço algo ou quando digo algo; eu só faço e digo porque quero, porque acho pertinente. Eu faço e digo porque penso que me é de direito fazer e dizer.

Se em algum momento minha maneira intempestiva e voluntariosa de ser te representou algo, me desculpe. Sim, desculpa, porque eu não concordo com a máxima dos covardes: “tu és eternamente responsável por aquele que cativas”. Eu não sou responsável por aquilo que posso significar para os outros. Não posso ser responsável por esses sentimentos confusos e difusos que se avolumam aí dentro da tua cabeça. Eles não estão na tua alma, estão na tua cabeça. Se tu nunca ouviste falar em sentimentos da cabeça, pois te apresento os teus nesse momento.

Olha pra mim, bem atentamente: o que tu vês? Não é só uma bela carinha da juventude, como diriam alguns desavisados, ou um corpo envergado pela ansiedade, como diriam os mais perspicazes. É um todo um pouco disforme, não “sem forma”, mas “com formas não tão ajustadas”. Vês? Meu corpo não é ajustável. Mais que um corpo, te sôo como um brinquedo, talvez. É um retorno à infância esses teus sentimentos, tu me vês como um boneco? Se sim, que ótimo. Para mim é mais fácil apenas representar um papel. Se não, tu me colocas numa situação de extrema gravidade. Tudo o que transcende o meu corpo foge completamente do meu controle, e justamente é a parte de mim que é mais fascinante. Tu podes ser atropelado por aquilo que sou além do meu corpo.

Muito me intrigam teus mistérios. Fico surpreso em saber daquilo que tu sentes sobre mim, me perco, me confundo, me choco. Vira-me as idéias de ponta-cabeça esse teu interesse pelo meu mundo das idéias. Não sei o que fazer com minhas idéias e, como te disse, não controlo aquilo que sou além do meu corpo. Mas te garanto que tudo aquilo que sou além do meu corpo é da ordem do fantástico. Não quero mais discutir o que é meu corpo porque ele é uma peça não tão fundamental na nossa relação: ele pode se transformar, metamorfosear, vir a ser o que não é e em seguida deixar de ser para tornar-se algo completamente diferente. O corpo é algo que morre, que flui, que se vai sem poder conter. É tolice controlar o corpo. Quero discutir tudo aquilo que vai além do corpo. Onde nascem os sentimentos além da carne? Confundem-me, ou melhor, desorientam-me os sentimentos que surgem a partir de alguma coisa não tangível. Sob eles não recai nenhum tipo de lei. Eles transitam por ruas onde não existem sinaleiras.

Eu não sei o que fazer com o que tu sentes pelo simples fato de que não sou eu a sentir. Não me peça para ter a tutela da tua paixão, pois não tenho a tutela nem da minha própria. Volto a dizer que não sou responsável por nada que transcenda meu corpo. Não posso abrigar em minha responsabilidade os sentimentos que evoco em cada espírito. Eu, entretanto, preciso avaliar o que sinto em relação a ti. É algo difícil de fazer porque assim tu me obrigas a olhar para um lugar sob o qual, até então, não incidia nenhuma luz. Por isso, não posso te dizer que existiu desde sempre algo ali. Tampouco posso te dizer que jamais houve, mas te garanto que não sei. Deixe-me olhar, deixe-me avaliar, deixe-me sentir. É-me cruel este exercício. Não me imponha regras ou datas para te entregar minha avaliação. O sentimento é um trem que desconhece a estação onde deve chegar. Se ele nunca apontar na curva, é porque minha dúvida já é certeza. Se ele parar na estação, também. Seja minha certeza qual for, só te peço para que eu a sinta sem remorso.