Arqueologia de uma Relação

- ... porque na verdade eu sinto uma solene indiferença por ti, por tuas atitudes, pelo que tu falas e pelo que tu pensas representar pra mim. Honestamente é isso.

Eu pensei longamente sobre essas últimas palavras - as últimas sem dúvida, não há maneira de construir qualquer coisa sobre os escombros deixados por elas - e cheguei à conclusão de que estavam acertadas. Estavam acertadas com a situação na qual nos encontrávamos, se encaixavam como peça na grande engrenagem que nos permitia ainda viver juntos, se ajustavam, cabiam, aderiam, combinavam com o sucessivo mimetismo ao qual recorríamos para nos fazer parecer com Os Outros Quaisquer. Nossas capacidades miméticas, entretanto, não eram nosso forte. Longe de sermos camaleônicos e, então, sermos confundidos com Os Quaisquer; longe de conseguirmos disfarçar as diferenças que nos compunham, que subtraíam nossa beleza e potencializavam nossa estranheza; longe de posarmos ao lado de um pote de margarina a ponto de fazer as caras e as bocas, tais quais elas se mostravam, dos casais perfeitos que torram pães integrais e bebem leite desnatado no café da manhã; longe de tudo isso era onde ficava o leprosário em que repousava a tranqüila razão de estarmos juntos. Tentamos, sim, por muitas vezes, imbecilmente aliás, provar que éramos como os grandes amantes do nosso tempo. Quisemos nos adaptar, acreditamos na adaptação, julgamos que éramos capazes para tal, chegamos a jurar fidelidade às regras do jogo, as aceitamos e as celebramos, mas não houve maneira de mantermos ou de sustentarmos qualquer identidade com Os Outros Quaisquer. Assustamo-nos, de certo, quando percebemos que não éramos nada daquilo que nos desejavam ser, ou nada daquilo que nos pensavam ser, ou nada daquilo que lá desde o início todos combinaram ser. Quando nós estávamos juntos gritávamos oposições seqüenciais que nem sempre – raramente - eram complementares, fazendo de nós dois camaleões frustrados na tentativa de esconderem-se na paisagem suja, porém confortável.

Foi então que, sem perdoar um ao outro, optamos silenciosamente pelo desprezo. Escolhemos sacar do fundo das nossas habilidades – que eram muitas, inclusive estas – os ouvidos moucos e os olhos míopes para fazê-los de máscaras. Nossas máscaras públicas, mas também privadas. E aí houve o princípio da nossa cisão, no momento exato em que trouxemos para dentro dos nossos muros a mesquinharia generalizada na qual Os Outros Quaisquer estavam imersos. Para sermos como Eles além-muros, decidimos pactuar com a mediocridade e fingir não ver, fingir não escutar, decidimos fingir que estávamos fingindo ser o que éramos, aparentemente sem nos importar um com as diferenças em relação ao outro. Esse fingimento foi decantando no nosso dia-a-dia como terra misturada à água, e lá no fundo o fingimento decantado solidificou-se. Eis que chegaram momentos em que a terra separou-se por completo da água, e nosso teatro cotidiano de respeito às diversidades que nos compunham se confundiu com nossas regras éticas básicas: tolerávamos um ao outro com uma naturalidade perversa, costume esse que nos poupava o latim desperdiçado em discussões inúteis do fim do dia em que um tentava mudar o outro a seu bel prazer ao mesmo tempo em que afastava preocupações tolas sobre o virtual interesse de terceiros em nossos corpos, mentes ou espíritos. O ciúme já não esquentava nossa cama. E a história de nós dois virou ficção, e nossa ficção virou piada, e a piada virou mito. O mito da origem, do início, do começo ideal da nossa relação – esse sim – mimetizou-se com as lendas barrocas d’Os Outros Quaisquer, elas cheias de rococós sentimentais e presságios de vidas anteriores, cheias de sinais astrais e superstições sobre bouquets, vestidos brancos, arroz e rosas vermelhas. A história de nós dois, tão idiossincrática, virou objeto de uso e abuso públicos.

O mais cruel de tudo foi que tínhamos esquecido de onde viemos, de como ali chegamos; esquecemos por que ainda acreditávamos ou se algum tempo acreditamos que funcionaríamos bem juntos. Esquecemos, ficou perdida no passado a escolha que fizemos em sermos indiferentes um ao outro. E minha frase, aquela minha última frase, foi o último sopro de um arqueólogo cuidadoso sobre a ruína de um templo perdido, de uma cidade soterrada, de uma ossada jurássica para tirar-lhe a terra decantada: minha última frase desenterrou, mostrando-nos e provando-nos, que existiu uma decisão bastante particular na história de nós dois que nos economizou pequenas doses de sofrimentos constantes - que, tal qual vacina, poderia nos ter imunizado contra tudo o que apequena -, mas que justamente por isso nos reservou um veneno concentrado para o fim - que num bote certeiro matou o que ainda poderia restar.